sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

Breves sobre o fósforo e o arsénio na vida


Texto publicado no sítio da Associação Viver a Ciência.

Tanto quanto é possível saber, com a tecnologia e conhecimentos geológicos actuais, quer o fósforo quer o arsénio, e seus derivados óxidos, estiveram presentes em abundância biodisponível antes do início da vida no planeta Terra (aqui). Compostos de arsénio até estiveram em níveis de concentração tóxicos para as actuais formas de vida, em locais onde a vida existiu e deixou registos.

Por outro lado, existem inúmeras evidências de que, antes do desenvolvimento de bactérias fotossintetizantes, compostos de arsénio foram mobilizados pela vida unicelular para a obtenção de energia através de processos de oxi-redução (ver aqui por exemplo).

A convivência do arsénio com a vida emergente está registada na existência de complexos proteicos respiratórios, genericamente designados por arsenato reductases, presentes em algumas bactérias anaeróbias (ou seja, que não precisam de oxigénio molecular para os seus processos energéticos).

De facto, a utilização de compostos de arsénio pela vida, para processos de vida, é conhecida pelo menos desde o princípio deste século. Em 2001, uma bactéria, a Thermus HR13, foi identificada numa fonte geotermal com temperaturas próximas dos 100 ºC, e caracterizada pela sua capacidade de utilizar o “venenoso” arsénio inorgânico, em processos “respiratórios” na ausência de oxigénio!

Igualmente “disponíveis” para integrarem a viagem evolutiva da vida, a prevalência do fósforo, em aparente detrimento do arsénio, terá tido mais a ver com a estabilidade dos compostos formados pelo primeiro com o oxigénio e com os outros elementos denominadores comuns na equação da vida (hidrogénio, carbono, nitrogénio, enxofre).

Em seres aeróbios, quer unicelulares ou multicelulares, o arsénio inorgânico e os sais de arsenato, interferem com o normal funcionamento metabólico. Causando stress oxidativo, inactivando proteínas, entre outras “bisbilhotices” bioquímicas, a semelhança dos arsenatos com os fosfatos, por exemplo, permite aos primeiros substituírem-se aos segundos, perturbando funções vitais.

Os compostos de arsénio são estruturalmente “parecidos” com certas matérias-primas necessárias ao metabolismo celular. Quase se poderia dizer que alguns compostos de arsénio são autênticos cavalos de Tróia. Arsenatos são transportados para o interior celular pelas mesmas proteínas membranares que transportam os tão necessários (ler mais à frente) fosfatos.

O engodo biomolecular está inscrito ainda mais profundo na intimidade celular. A frequência da substituição é suficientemente elevada para ser “rentável”, na bioeconomia celular, o investimento evolutivo de proteínas anti-arsénio (aqui). De facto, algumas espécies de bactérias possuem genes de resistência ao arsénio (ver aqui).

Os perigos da substituição, a toxicidade do arsénio e companhia, são tanto maiores quanto as parecenças com o fósforo e seus derivados. E isto apesar da clara diferença química elementar. O fósforo (símbolo químico P) é constituído por 15 protões e 15 neutrões, o arsénio (símbolo químico As) por 33 protões e 33 neutrões. As propriedades semelhantes, mas com nuances reactivas diferentes, são dadas pelo mesmo tipo de configuração electrónica de valência (3s2 3p3 para o P, 4s2 4p3 para o As), ou seja, pelas semelhantes possibilidades de interacção com outros átomos. Rodeado pelos mesmos átomos, com que pode interagir da mesma forma do que o fósforo, o arsénio insiste em perturbar algumas formas de vida, como a nossa.

E porque é que o fósforo é essencial à vida?

O anião fofasto (PO42-) é parte integrante do esqueleto da estrutura helicoidal da molécula de DNA (ácido desoxirribonucleico), “argamassa” dos nossos genes, assim como de outros tipos de ácidos nucleicos como sejam os “multifacetados RNAs (ácidos ribonucleicos). Mal formações embrionárias e a acção teratogénica dos arsenatos são há muito conhecidas pela interferência destes na estabilidade genética necessária ao desenvolvimento normal (ver aqui).

As células utilizam as ligações que o grupo fosfato estabelece para armazenar e transportar energia sendo a adenosina-tri-fosfato, ou ATP, a moeda energética franca a nível da biosfera terrestre.


Os fosfolípidos que formam as membranas celulares têm, como o próprio nome indica, fósforo na sua constituição. A presença do grupo fosfato na constituição lipídica é responsável, em grande parte, pelas propriedades membranares intrínsecas à vida em meio aquoso.

Compostos com o grupo fosfato, como o AMPc, o GTP, são ainda utilizados pela célula para comunicar com outras células ou para regular o fluxo e a transdução de informação, por exemplo, hormonal. De facto, a adição de um grupo de fosfato (designado por fosforilação) pode activar ou desactivar a função fisiológica de determinada proteína, ligando ou desligando determinada via metabólica e/ou de sinalização celular em resposta a um sinal hormonal, factor de crescimento, entre muitos outros.

Por fim, não é preciso grande imaginação, ou mais informação, para entender os distúrbios que as substituições por aparências podem causar na fina organização da vida.

António Piedade

7 comentários:

Anónimo disse...

Brinca brincando:

Não acabo de entender
como a vida começou:
de que modo se formou,
vá lá a gente saber!

JCN

Anónimo disse...

Seis elementos entraram
na organização da vida:
falta saber, à partida,
para que fins se juntaram!

JCN

Anónimo disse...

Será que a vida surgiu
tendo em vista o ser humano,
esse bicho soberano
como sempre se assumiu?

JCN

Anónimo disse...

Sem pretender ser do contra,
eu por mim tenho a impressão
que o ser humano se encontra
no topo da criação!

JCN

José Batista da Ascenção disse...

Ora, de um artigo assim, sobre esta matéria, estava eu muito precisado. Claro, objectivo, pedagógico (no sentido fundamental, diria mais nobre, do termo).
E com as oportunas ligações para a bibliografia adequada. Agora, basta-me estudar.
É um enorme privilégio, poder aprender assim, confortavelmente, por tão baixo custo.
Quase apetece dizer: há almoços grátis, desde que alguém os prepare e os ofereça.
E nesse caso cabe-nos dizer, com toda a sinceridade: Obrigado (Dr António Piedade)!

Anónimo disse...

A ÚLTIMA UTOPIA

Um cientista um dia há-de surgir,
um físico, um biólogo de ponta,
dado ao culto das musas, que dê conta
do mundo que está prestes a emergir!

Em verso heróico ou como ele entender,
há-de imortalizar o contributo
que a ciência terá dado ao estatuto
do ser humano... isento de sofrer.

Talvez seja o retorno ao paraíso
em plena liberdade de sonhar,
tendo para viver quanto é preciso.

Como Camões, há-de ostentar na mão
o poema da chegada ao bem-estar
da nova sociedade em formação!

JOÃO DE CASTRO NUNES

Anónimo disse...

Muito interessante e esclarecedor o seu artigo Antonio Piedade. Parabéns
Alane Beatriz Vermelho
Universidade Federal do Rio de Janeiro.

CONTRA A HEGEMONIA DA "NOVA NARRATIVA" DA "EDUCAÇÃO DO FUTURO", O ELOGIO DA ESCOLA, O ELOGIO DO PROFESSOR

Para compreender – e enfrentar – discursos como o que aqui reproduzimos , da lavra da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Ec...