terça-feira, 21 de setembro de 2010

ALTRUÍSMO BACTERIANO


Nova crónica de António Piedade saído n'"O Despertar":

As bactérias, microrganismos unicelulares, colonizam o planeta Terra pelo menos há cerca de 3,8 biliões de anos. A sua origem sobrepõe-se à da própria vida tal qual a conhecemos.

Sobreviveram a inúmeras e profundas alterações geoclimáticas, catástrofes ditas naturais, a colisões de grandes meteoros com o nosso planeta. Adaptaram-se a reagir quer à crónica alteração geológica do planeta, quer a situações agudas nos seus ecossistemas. É possível afirmar que são os seres vivos melhor adaptados aos “feitios” do planeta na sua viagem cósmica.

Se pensarmos nos efeitos da acção humana sobre o planeta e constatarmos que provocamos alterações nefastas (para nós!), o que dizer da acção das bactérias sobre o condomínio Terra? Basta notar que a oxigenação da atmosfera terrestre se deveu à acção de uma espécie de bactérias púrpuras: as cianobactérias. O aumento, ao longo de milhões de anos, da concentração relativa de oxigénio até aos actuais cerca de 20%, influenciou decisivamente a evolução das formas de vida multicelular e mais complexas, que dele ficaram cativos para os seus processos energéticos. Mas continuaram a existir bactérias que não precisam de oxigénio para viver. Algumas, por exemplo as do género Lactobacillus, vivem, sem oxigénio, no nosso intestino.

Os microbiologistas têm dificuldade em encontrar lugares no planeta explorado que não estejam colonizados por bactérias. Há bactérias, designadas por extremófilas, que vivem em condições de temperatura, pressão e salubridade incompatíveis para a grande maioria das outras formas de vida do planeta. Há até um microrganismo, a estirpe 116 (Methanopyrus kandleri), que vive e se reproduz a 122 °C!!!

Importa dizer que, apesar de unicelulares, temos sempre de racionalizar as bactérias colocando o acento tónico na sua disseminação em colónias de biliões de indivíduos! E que ocorre uma constante troca de informação, quer através de moléculas simples quer através de outras complexas, como as dos genes, entre a maior parte das bactérias da colónia.

Aliás, podemos, sem exagerar, notar a existência de uma forma refinada de informação bacteriana disseminada em rede e acessível em qualquer ponto da biosfera!

Assim, não é de estranhar que as bactérias tenham incorporado na sua máquina de sobrevivência estratégias para alertar os vizinhos colonos quando são alvo de agressões à sua integridade e sobrevivência.

É o que acontece com a resistência aos antibióticos. Aliás, muitos dos que começámos por usar são produzidos por bactérias. De facto, no combate às que nos causam doenças, utilizamos uma estratégia composta por armas bioquímicas forjadas no cadinho primevo da própria vida.

Recentemente, microbiologistas norte-americanos, de vários institutos e universidades do condado de Massachusetts, descobriram que o indol (estrutura na figura ao lado), produto da degradação do aminoácido triptofano no metabolismo bacteriano (presente de forma abundante nas fezes humanas conferindo-lhes um odor fecal característico), é uma molécula sinalizadora de stress ambiental entre bactérias da mesma espécie.

Sempre que uma bactéria é atacada por antibiótico, ela activa uma série de processos bioquímicos para sobreviver enquanto indivíduo, mas também para “avisar” as restantes bactérias da colónia da agressão.

Assim, através da difusão da “palavra” indol, as bactérias da colónia activam processos bioquímicos que as tornam mais resistentes (aumento da actividade de bombas que expulsam o antibiótico do interior da bactéria; activação de processos antioxidantes). E, para isso, excreta indol como grito de aviso. Ao estudar o comportamento dinâmico de uma colónia de bactérias modelo, neste caso a Escherichia coli, face a doses crescentes de antibióticos, os autores do estudo publicado na revista Nature (aqui) verificaram que bactérias isoladas resistem muito menos aos antibióticos do que a colónia como um todo.

Por outro lado, identificaram um comportamento semelhante ao “altruísmo humano”: algumas bactérias da colónia “sujeitam-se” a uma luta individual contra o antibiótico para encontrar uma forma de resistência. Se, por um lado, se colocam individualmente em perigo, o custo da sua perda resultará, por “tradição adaptativa”, na “descoberta” de uma solução de sobrevivência para a colónia como um todo!

Este comportamento “altruísta” ter-se-á optimizado ao longo da evolução bacteriana, biliões de anos antes de os primeiros mamíferos deixarem os primeiros rastos na Terra.

Uma vez que há mais bactérias no nosso intestino do que células no nosso corpo, apetece perguntar, ironizando, se haverá mais altruísmo e caridade nas nossas vísceras do que na humanidade inteira?

António Piedade

8 comentários:

Ana disse...

António Piedade, (mais) um texto soberbo! :) Só discordo de um ponto, se me é permitido "meter o bedelho": o verbo provocar que antecede as alterações climáticas. Poderá ser uma questão de semântica, mas nos tempos que correm, onde o fundamentalismo e a ignorância são quase regra,parece-me importante salientar que as alterações climáticas não foram provocadas pela acção humana, mas sim, aceleradas e intensificadas. O efeito de estufa é um fenómeno natural que não foi provocado pela acção humana, mas sim, intensificado e acelerado. Do mesmo modo, o aquecimento global, que é provocado pela intensificação do efeito de estufa (e por outros fenómenos, que são apontados por alguns colegas, entre eles a actividade solar), é um fenómeno natural que seguiria o seu curso naturalmente sem a intervenção do homem. Não com a intensidade ou rapidez que assistimos hoje, mas acabaria por acontecer. :)

Temos tendência a esquecer (não estou a afirmar que o António Piedade ou os restantes leitores o fazem...) que a Bioesfera é um "organismo" que se auto-regula, dê por onde der. A grande questão é se a humanidade ainda estará cá para desfrutar de um novo equilíbrio. Não se trata de salvar a Terra, trata-se de salvar o nosso "condomínio" e as condições que são favoráveis à humanidade, uma vez que não somos colónias de bactérias capazes de resistir, em poucas gerações, a uma multitude de condições ambientais.

José Batista da Ascenção disse...

Duas pequenas notas:
Quando o Doutor António Piedade escreve que as "as bactérias [...] coloniza[ra]m o planeta Terra pelo menos há cerca de 3,8 biliões de anos" é conveniente esclarecer que está a usar o termo bilião com o significado de milhar de milhão de anos. No ensino secundário ensinamos aos alunos que as bactérias colonizaram o planeta há três mil e oitocentos milhões de anos.
Realmente, cada ser humano é suporte de um número de bactérias muito superior ao das suas próprias células (que alguns livros indicam serem entre 80-100 biliões, entendido o bilião como um milhão de milhões). Há bactérias permanentemente sobre a nossa pele, nas nossas cavidades: boca, narinas... e no interior do nosso intestino. Segundo algumas fontes, a matéria fecal é constituída em cerca 40% da sua massa pela "famosa" Escherichia coli (que suponho ser a que está fotografada no post). Estas bactérias são constantemente renovadas, pois bastam 20 minutos para cada uma delas se dividir em duas, que no mesmo intervalo de tempo se dividem em quatro, a seguir em oito, depois dezasseis, trinta e duas, sessenta e quatro, e assim sucessivamente... Pelo que, a uma tal velocidade de reprodução, evoluem com facilidade mantendo-se permanentemente adaptadas ao ambiente que lhes proporcionamos. Somos portanto, evolutivamente muito mais frágeis do que as imensas colónias de bactérias que em nós habitam...

Ana disse...

A questão bilião/bilhão e mil milhões/um milhão de milhões tem feito correr muita tinta, dado o facto de não existir um consenso prático relativamente ao facto de um bilião (ou bilhão) ser mil milhões ou um milhão de milhões! Basta consultar diversos prontuários, dicionários, gramáticas, de diversas edições e diversos autores para se instalar a confusão. No entanto, parece que essa falta de consenso deriva do facto de o bilhão/bilião ter um significado diferente consoante o país...

Do que apurei, segundo Nuno Crato (se a citação estiver correcta), presidente da SPMatemática, actualmente, na Europa (excepto França, pois têm denominação própria, milliard), portanto, em Portugal, bilião é o equivalente a um milhão de milhões (pareceu-me entender que nos UK costumava ser mil milhões, mas foi alterado para um milhão de milhões). Já nos EUA, Brasil e outros países de expressão inglesa, o bilião reporta a mil milhões...

Ora, na área científica, para um português,faz toda a diferença saber se o autor, quiçá norte-americano, se está a referir a mil milhões ou a um milhão de milhões.

Daí que concorde com o comentador/colega José Baptista: ao usar o termo bilião, acaba por ser necessário referir ao certo se fala em "3 mil e oitocentos milhões de anos" de anos ou "oitenta milhões de milhões de bactérias" (números capazes de nos deixar zonzos!), utilizando os exemplos do colega. Isto para efeitos de divulgação; podemos partir do princípio que, como portugueses, utilizamos a chamada escala longa. No entanto, muitos leitores poderão estar habituados à "escala curta" por com ela lidarem preferencialmente (seja porque não são europeus, seja porque não lidam na Europa, enfim...ou simplesmente por confusão e até ignorância do facto - já Sócrates dizia que só sabemos que nada sabemos, "lol").

Poderá ser uma questão de preciosismo no que respeita ao soberbo texto, mas é uma questão que tem feito correr muita tinta.

António Piedade disse...

Como já me disseram a propósito de uma outra crónica, tudo se resolve se usar a notação científica 10^9 = mil milhões.
O meu repto vai para a Sociedade Portuguesa de Matemática ou mesmo para a Academia Portuguesa de Ciências que deveriam instalar consenso sobre a terminologia.

Relativamente ao verbo "provocar" relativo à acção humana (ou de qualquer outra espécie) sobre a biosfera, estou inteiramente de acordo com a Vani. Mas sabe, correndo o risco de pisar o incorrecto, é bom de vez enquanto utilizar umas expressões que permitam incendiar uma boa e civilizada discussão. Aprende-se muito, não acha?

António Piedade

Ana disse...

António Piedade, do que depreendi, a Sociedade Portuguesa de Matemática convencionou mesmo utilizar a escala longa e não há intenção futura conhecida de se adoptar o mesmo sistema que os colegas norte-americanos e afim. Melhor mesmo será evitar o termo bilião, "lol".
E concordo consigo, quando diz que "é bom de vez enquanto utilizar umas expressões que permitam incendiar uma boa e civilizada discussão" :)) Plenamente de acordo! Costumo chamar a isso o fazer de advogada do diabo, ehehe. No entanto, nem sempre se é bem entendido e de imediato se levantam os protestos, alguns muito pouco educados e civilizados...

E com este belíssimo texto, já aprendi imenso hoje (e refresquei a memória; o timing da publicação também é interessante, uma vez que tenho estado a corrigir e avaliar trabalhos baseados no documentário Home e onde muitos acharam por bem incluir o papel destas bactérias fotossintéticas primordiais na evolução da Vida).

Anónimo disse...

SUPREMA LIÇÃO

Ao ler o seu artigo, Professor,
sobre as bactérias, claro e bem gizado,
fiquei completamente fascinado
pelas cogitações do seu autor.

Quem diria que um ser tão primitivo,
tão simples, ancestral, com bilhões de anos,
nos haveria a nós, pobres humanos,
de realmente ser de lição motivo!

Perante o nosso atávico egoísmo,
dá que pensar comparaticamente
o seu pendor para o colectivismo.

Coisas da natureza, cujos véus
se vão rasgando e abrindo à nossa mente
cada vez mais virada para Deus!

JOÃO DE CASTRO NUNES

Anónimo disse...

Altero a redaacção do 8º verso para:

de ser para lição tão bom motivo!

Anónimo disse...

Se a ciência em poesia
alguma vez se expressasse,
tudo mudava de face,
outro galo cantaria!

JCN

NOVA ATLÂNTIDA

 A “Atlantís” disponibilizou o seu número mais recente (em acesso aberto). Convidamos a navegar pelo sumário da revista para aceder à info...