sexta-feira, 25 de junho de 2010

A reforma total

Dizia em texto aqui publicado em Dezembro de 2009 que era quase certo que o nosso Ensino Básico sofreria mais uma reforma/reorganização curricular, lembrando que a última é de 2001. Era disso que se falava na altura. Passados seis meses, percebi que não é apenas o Ensino Básico que será reformado/reorganizado mas todo o ensino não superior.

Afirmo isto com base num documento que já é público (apesar de se apresentar na forma de power-point), datado de Maio último, e intitulado Proposta de Revisão Curricular dos Ensinos Básico e Secundário.

Trata-se de um documento que reflecte o trabalho de um órgão consultivo do Ministério da Educação, um tal Conselho de Escolas, que, ao que parece, tem levado a sua função muito a sério, criando uma “comissão da revisão curricular” cujo objectivo é “contribuir para uma das reformas do nosso sistema educativo mais anunciadas, mais desejadas e mais proteladas nos últimos anos. Esclarece este Conselho, tão pró-activo, que “sendo certo que o propósito do nosso trabalho se centrava no Ensino Básico, cedo se percebeu que, para se alcançar uma proposta mais ou menos harmoniosa, não poderíamos deixar de fora o ensino secundário”.

Muito bem, e o que propõe o dito Conselho para a educação das nossas crianças e jovens entre os três e os dezoito anos de idade?

(Sugeria ao leitor que consultasse o referido documento, por exemplo, aqui).

Depois de analisar ao detalhe todos e cada diapositivo, devo confessar que não consigo responder a esta pergunta essencial que temos legitimidade de ver respondida por parte de quem propõe uma reforma/reorganização tão ambiciosa.

Avanço e de entre as muitas considerações de teor pedagógico que poderia tecer, fico-me, de momento, pelas mais gerais e óbvias:

Centrando-me nos "pressupostos", não me parecem, de facto, sê-lo, pois não traduzem uma ideia clara e consistente acerca do que deve ser a educação escolar no futuro, com base em contributos filosóficos e científicos sólidos, a sua essência é de natureza conjuntural e remediativa. Faço as mesmas considerações para a conceptualização dos três (ou serão quatro?) ciclos propostos: pré-escolar, primário, secundário geral ou unificado, e secundário superior.

Destaco para o ensino pré-escolar, com a duração de três anos, que este continua a não ser encarado na sua especificidade, subordinando-se aos desígnios do primeiro ciclo. Por outro lado, insiste-se em concebê-lo com um "espaço de socialização", descuidado-se a dimensão cognitiva do desenvolvimento das crianças.

Destaco para o ensino primário, com a duração de quatro anos, a mudança de… designação (deixaria de se chamar "primeiro ciclo"). Insiste-se na avaliação qualitativa (conceito que foge a qualquer modelo de avaliação que se preze) e na tendência de não retenção dos alunos (omitindo-se as medidas fundamentais para os alunos que não progridem de modo regular na aprendizagem).

Destaco para o ciclo ensino secundário geral ou unificado, com a duração de 4 anos, a organização do currículo em quatro áreas do saber: Ciências Exactas e Experimentais; Línguas e Humanidades; Expressões; Educação Sexual e Cidadania.

Ficamos a saber que esta última (onde se associa directamente a educação sexual à cidadania) são uma área de saber. Ficamos a saber também que a História e a Geografia devem ser geridas pelas escolas, advertindo-se que a primeira deve ter no mínimo dois anos de escolaridade, mas a Educação sexual e cidadania será leccionada em todos os anos.

Continua o preconceito errado de que a avaliação formativa deve ser a principal modalidade de avaliação, e que também neste ciclo a retenção é uma medida de excepção sem se mencionar mais uma vez as medidas a que acima aludi.

Destaco para o ciclo ensino secundário superior, também com quatro anos de duração, um primeiro patamar de dois anos generalista e um segundo patamar, também de dois anos, para a frequência de cursos orientados para o prosseguimento de estudos e profissionais. Em ambos se assegura a Lingua Portuguesa. É de louvar!

Depois ainda há os Cursos de educação e formação, onde cairão os alunos que se vão perdendo… E, esperando estar enganada, serão muitos...

13 comentários:

DiogoF. disse...

Destaco:

1) A persistência do facilitismo ("tendência para não reprovar");

2) Algumas mudanças que vejo como "pseudo-mudanças" (ex: mudança de nomes das coisas; dizer que o 9º ano já não é do Ensino Básico ou Ensino Secundário Geral mas que é do Ensino Secundário);

3) Questões pontuais que fazem muito pouco sentido (ex: A História fica a cargo das escolas; a Educação Sexual é leccionada durante cerca de quatro anos, pareceu-me);

4) A carga horária do actual Ensino Básico é muito pesada, pelo que se propõe a reduzi-la e aumentar no Ensino Secundário. Será uma brincadeira? Concordo que seja pesada no Ensino Básico mas creio que aumenta-la no Secundário trará mais problemas do que vantagens, nomeadamente ao falado nível de concentração e motivação e também ao nível de desenvolvimento de áreas extra-curriculares pelos alunos. A não ser que tenha interpretado mal e as 6 disciplinas "técnicas" (uma obrigatória e cinco opcionais) se refiram a uma distribuição pelos quatro anos.
Além disso, encontro aqui uma incoerência. Pretendem retirar carga horária ao Ensino Básico, logo, o 9º ano está muito carregado. No entanto, passam-no para o Ensino Secundário, no qual propõe uma intensificação da carga horária. Em que ficamos ?

4) A continuação de um afunilamento da formação dos alunos no Ensino Secundário. Haverá problema de um aluno gostar, simultaneamente, de História, Física, Filosofia e Psicologia? Parece que sim, já que, estando as coisas como estão, ou se tem só História ou se tem as outras, sem História. Não só há vários casos em que os alunos do actual curso de Ciências e Tecnologias sucedem em Economia ou Direito, como há muitos em que os alunos não sabem "o que fazer à vida", já que lhes cortaram as pernas no 10º ano e não conseguem agora optar pelo caminho das humanidades, das artes ou das ciências (gostam de tudo e não os deixaram aprofundar o que poderá ser aquilo com que se dão melhor). Mas mexer com isto seria mexer com uma grande quantidade de coisas.

Fartinho da Silva disse...

Cara Helena Damião,

Concordo em absoluto com a sua surpresa. Mas como já aqui alguém referiu, parece que em Portugal se gosta de estar sempre a mudar tudo, porque... sim!

Outra consequência, para além das referidas, que me parece óbvia é o facto de, finalmente, o lobby das "ciências" da educação conseguir que uma boa parte dos seus rebentos (alunos das Escolas "Superiores" de "Educação") possa "leccionar" desde o 1º ano de escolaridade até ao 8º ano!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! Fantástico! Teremos assim garantido que a ideologia dominante se prolongue até ao 8º ano de escolaridade...! Se hoje é quase impossível reprovar alguém, depois será mesmo impossível!!

A antiga ministra da "educação" deveria responder pelas enormes trapalhadas que criou neste sector. Criou esta estrutura para justificar a ideologia dominante e os resultados são os conhecidos e parece que tal estrutura até já planeia o futuro com base em coisa nenhuma, porque... sim!!

Mas isto não é caso único. A nomenklatura achou que deveria criar uma "escola" aberta à sociedade (seja lá o que isso for) e como tal percebeu que deveria ter ao seu serviço alguém que representasse os encarregados de educação, então criou uma coisa chamada de CONFAP. Percebeu ainda que tinha que arranjar uma coisa qualquer que o povo considerasse independente e criou uma coisa denominada de Conselho Nacional de Educação. Percebeu que tinha que ter as "escolas" do seu lado e então criou a tal estrutura Conselho de Escolas. Percebeu que deveria formatar os professores (perdão, formar) e como tal criou as escolas "superiores" de educação e umas coisas que denominou de cursos "via ensino" (seja lá o que isso for).

Portanto, para a nomenklatura, os parceiros não surgem da sociedade civil. Para a nomenklatura, os parceiros devem ser criados por ela para a servir e para justificar a sua ideologia. Para a nomenklatura, os servos (perdão, os parceiros) devem ser estruturas cujos membros devem ser escolhidos por ela (noutras latitudes eram denominados de aparatchik).

Quando é que discutimos o que realmente se passa nas escolas públicas? Quando é que discutimos a missão da escola? Quando é que discutimos a missão do professor? Do aluno? Dos encarregados de educação? Quando é que discutimos os objectivos do ensino pré-escolar? Provavelmente, nunca!

Enfim, Portugal no seu melhor...

Helena Damião disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Helena Damião disse...

Caro leitor Fartinho da Silva
Mas, ao que me é dado saber, este "lobby das ciências da educação", em particular, é constituído por professores com as mais variadas formações, que estão integrados em escolas, sendo conhecedores das práticas reais... Não é constituido por académicos teóricos, que reflectem no plano do ideal, desligados do sistema de ensino concreto... É desconcertante!

Carlos Albuquerque disse...

Mantém-se a tradição de mudar tudo antes da mudança anterior ter sido avaliada.

Se nos levássemos a sério, uma mudança geral tão pouco tempo depois das magníficas reformas anteriores deveria dar lugar à responsabilização política e técnica de quem a pôs em prática.

ana disse...

É louvável o seu post e uma tristeza o que descreve.
Julgava que uma ministra saída do Plano Nacional de Leitura iria verdadeiramente preocupar-se com o saber mas tudo se resume ao economicismo.
Sinto-me defraudada.
Boa noite!

Fartinho da Silva disse...

Cara Helena Damião,

Comentário muito interessante o seu, mas repare que não é assim tão desconcertante. A esmagadora maioria dos professores, deste sistema de "ensino", que luta contra o status quo, não passa, como diz o povo, da cepa torta..., portanto ou se está com a nomenklatura ou não se faz parte do aparatchik!

Anónimo disse...

Serão esses "professores com as mais variadas formações, que estão integrados em escolas, sendo conhecedores das práticas reais..." aqueles a quem Guilherme Valente chamou, de forma muito certeira, os idiotas úteis?
E, já agora, a propósito da entrevista a Maria do Carmo Vieira, sempre ouvi dizer que depois do fundo há mais fundo.
É caso para estarmos, seriamente, preocupados.
Ana

Anónimo disse...

Cara Helena Damião,

Quero aqui deixar apenas uma palavra de apoio aos professores do então futuro ensino primário, se tal for levado adiante. São eles quem vão ter de aguentar as críticas por ter passado alunos mal preparados, não vão ser os professores do actual 2º ciclo a "puxar" por eles, já que esses têm uma metodologia muito estranha (diria que a olhar para o bolso deles e não educação dos seus pupilos, mas isso é somente opinião de quem lá passou há pouco tempo) de ensino.

Falar também acerca do comentário de DiogoF, relativamente ao ponto 4. É necessário aprender a distinguir entre gostos e profissão. Eu mesmo tive que decidir a minha vida há nem uma mão cheia de anos, e apesar de ser um completo interessado por literatura, história e algumas outras áreas, não esqueci o meu gosto por ciências exactas (lembro, sou somente um exemplo). Bastou, então, uma lista com todas as minhas possibilidades. Escolher é difícil, mas afinal até falou anteriormente que os facilitismos são um problema que perdura na actual política da educação.

João Gil.

_______

Anónimo disse...

A vontade é de chorar baixinho, de desespero, pura consternação e desalento. Quando se pensa que não é possível piorar...pensa-se mal!
Quem nomeia as mentes que brilham desta maneira e passam a papel coisas com esta clarividência?! Porque não contrata o Ministério pessoas com bom senso em vez de delirantes profissionais?
O que quererão com isto? E porquê?
Mãe de 3 filhos (de 15, 17 e 20 anos), Lisboa.

Anónimo disse...

Já tinha visto e não sendo professor embora trabalhe na escola isto é do mais primário (reles) que se possa imaginar - ainda por cima vindo dum conselho de escolas, o que nos faz logo desabafar "olha por quem andamos a ser dirigidos(?). Da terminologia à ideia peregrina de criar a disciplina de cidadania e sexualidade...
Sem ter nada a ver com isto mas por muito do que aqui se diz neste blog (e por vezes como se diz) chamaria aqui a atenção para o conteúdo do ponto 2 do artigo 8º da lei de bases do sistema educativo porque acho que nunca foi tido em conta nas práticas do sistema educativo e talvez explique muito do mal que vai proliferando no mundo da educação. Gostava de ver alguns comentários.

jose figueiredo

joão boaventura disse...

Caro Fartinho da Silva

Quando diz

"Outra consequência, para além das referidas, que me parece óbvia é o facto de, finalmente, o lobby das "ciências" da educação conseguir que uma boa parte dos seus rebentos (alunos das Escolas "Superiores" de "Educação") possa "leccionar" desde o 1º ano de escolaridade até ao 8º ano!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

Isso significa que, para o Estado, já é meio caminho andado para estender o lençol até ao 12.º, para ter um mercado educativo apetecível e barato, com externalidades sedutoras.

A nova reforma até já começa a inovar observar neste item do Estatuto da Carreira Docente:

"3.3 – Os estabelecimentos de ensino asseguram a ocupação dos alunos através da organização de actividades livres nos períodos situados fora das actividades lectivas e do encerramento para férias de Verão e em todos os momentos de avaliação e períodos de interrupção das actividades lectivas."

Isto significa que o professor será polivalente, não só nas áreas das respectivas disciplinas, mas também especialistas em "actividades livres", o que é contraditório, porque se são livres, então deixemos os alunos respirar em paz, e cantemos com os Pink Floyd Teacher, leave those kids alone, para não transformar a escola numa caserna e os alunos em soldados.

Porque de facilitismo em facilitismo, caminhamos para a construção de um país à procura do abismo.

Por alguma razão, os três países periféricos, isto é, marginalizados, têm governos socialistas.

Fartinho da Silva disse...

Muito bem observado Caro João Baoventura. É muito raro encontrar alguém que tenha lido o Estatuto da Carreira "Docente"!

Para os socialistas, a escola deve ser antes de tudo um espaço de socialização e se sobrar algum tempo e disponibilidade então que se ensine alguma coisa, desde que não seja nada de muito complexo, porque pode traumatizar as criancinhas...! Não é por acaso que tenho chamado a esta escola de Espaço de Guarda e Entretenimento de Crianças e Jovens..., porque é isto que o socialismo tem construído em Portugal.

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