quinta-feira, 22 de outubro de 2009

Tradição e competência

Texto de João Boavida, antes publicado no diário As Beiras:

Uma reportagem no jornal Público fala-nos da Leica, uma fábrica alemã de instrumentos de precisão que tem o melhor da sua produção em Vila Nova de Famalicão. Estão ali instalados há 36 anos, durante alguns meses recorreram ao lay-off, mas, neste momento, a produção recuperou e as encomendas estão em alta. É uma história de esperança, que todos desejamos se repita em muitos lugares, mas o que aqui mais interessa não é isto.

O interessante é que, quando, em 1973, a fábrica veio para Portugal à procura de salários baixos, teve uma agradável surpresa: naquela zona os operários tinham competências especiais para o tipo de trabalho que era exigido – construir e verificar instrumentos ópticos de alta precisão. E isto em virtude das competências adquiridas por muitos na Boa Reguladora, ou simplesmente Reguladora.

Antiga (e agora reactivada) fábrica de relógios: de coluna, de mesa, de sala, de parede, de cuco e de capelinha, despertadores ou não, que se viam em casas remediadas e de luxo, em repartições públicas e consultórios privados, nas salas de espera da CP e até nas gares das estações: aqueles originais relógios com caixa redonda e de apoio na parede, em madeira verde e um mostrador para cada lado, lembram-se? Em virtude disso e no dizer do Administrador, «cada trabalhador da Leica tem anos e anos de formação». E como «não se consegue um trabalho com esta qualidade em qualquer lugar do mundo, do dia para a noite» eles dão-se por muito felizes. E com razão.

É um facto: Quanto mais difícil e exigente é a profissão de uma pessoa, ou quanto mais complexo e difícil é o objecto que tem de produzir ou transformar, mais preparação tem de obter, isto é, mais complexa, demorada e exigente terá que ser a sua formação. Um dos nossos maiores problemas, como se sabe, é a preparação superficial, pouco profunda e cuidada da maioria – o que nos coloca em desvantagem em relação a países onde a formação geral é mais elevada. No caso da Leica as competências específicas adaptavam-se ao trabalho a fazer, resolvendo o problema da melhor maneira.

A reportagem refere outro dado curioso, que é um problema que os investigadores e estudiosos da educação discutem ainda – a transferência de competências. Diz o texto da reportagem, seguindo o raciocínio do administrador Müller: «Com o tempo, e trinta anos depois, as competências desenvolvidas pelos trabalhadores da Leica extravasou a mecânica de precisão. Actualmente é já reconhecida na sua componente óptica. Quer nas lentes esféricas, quer na chamada óptica plana, dos prismas, a Leica diz-se imbatível».

E, sem darmos por isso, estamos na importância da tradição para a qualidade dos produtos; quem diria, em dias de hoje? Aqui, aproveitou-se, tendo havido uma transferência dos relógios e das filigranas minhotas para as lentes e os binóculos, e por isso se produzindo melhor que qualquer um e «são imbatíveis»; noutros lugares desperdiçou-se, deitou-se fora.

Infelizmente, nem sempre as competências são aproveitadas. Coimbra pode queixar-se da falta de visão de muitos dos nossos administradores. Quando na cidade se fabricava a melhor cerveja do país, nos anos 50/60, levaram daqui a fábrica, por razões de concentração, ou remodelação, ou rentabilidade, ou lá o que foi, e mandaram às urtigas o melhor da arte. E o mesmo se poderá dizer de muitos bons artistas da cerâmica, da porcelana, dos têxteis e sei lá que mais, desprezando sempre o melhor de tudo: as competências adquiridas. Se tivesse havido a preocupação da qualidade talvez não se tivesse sido tão leviano, e talvez Coimbra continuasse a dar cartas nalgumas das suas indústrias tradicionais.

E em quantos lugares não se terá repetido isto? Lembremo-nos dos vidros da Marinha Grande, e da louça da Vista Alegre, e nos artistas que por lá há, nos tecelões das encostas da Serra da Estrela, nos discípulos mais talentosos do artista Rafael Bordalo Pinheiro, nas Caldas da Rainha, nos tecelões de Portalegre, e por aí fora. Ainda não se encontrou um processo de articular a dinâmica industrial moderna com as competências que levam tempo a adquirir, mas que, depois de alcançadas, são um trigo de primeira que nenhum padeiro devia desprezar.

Seja como for, uma coisa parece evidente: A falta de inteligência e de sensibilidade é um mal que devia pagar altíssimos impostos compensatórios.

João Boavida

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