domingo, 25 de outubro de 2009

"Não me mostraram as flores"

“Compreender a realidade e abordar situações e problemas do quotidiano”, “comunicar adequadamente em situações do quotidiano, “rentabilizar as questões emergentes do quotidiano e da vida do aluno”, “participação em conversas sobre assuntos do quotidiano”, “partir do quotidiano…”, “ dar atenção a situações do quotidiano”, são exemplos das muitas referências que se fazem no Currículo Nacional do Ensino Básico (2001) à integração no ensino formal das vivências dos alunos e de tudo o que nelas é identificável e compreensível. O mesmo acontece nos programas disciplinares, nos manuais de estudo e noutros documentos curriculares para este nível de escolaridade. E quem diz para este nível de escolaridade, diz para os outros: pré-escolar, secundário e superior.

Efectivamente, pressupõe-se que, se assim se proceder, os alunos se sentem “motivados” (expressão equívoca, dado os múltiplos significados que lhe têm sido atribuídos…) e se envolvem activamente na aprendizagem (palavra também equívoca pelas mesmas razões), pois perceberão a razão palpável da sua presença na escola.

Tudo aquilo que extravasa o horizonte particular e concreto dos alunos, que apela a outros horizontes temporais e espaciais, que remete para a abstracção, deverá, no caso de ser contemplado, subordinar-se sempre àquele: é da realidade circundante que os alunos têm de partir e explorar, para chegar ao conhecimento.

Esta concepção educativa, que se considera actual, é, pelo contrário, uma presença constante na história da educação ocidental, tendo-se tornado numa das bandeira do Movimento da Educação Nova, também designado por Movimento da Escola Moderna, que, em finais do século XIX, entrou em ruptura com a tão difícil de definir Educação Tradicional, a qual acusava de estar preenchida de grandes males.

Acusação que não era feita apenas por teóricos e práticos da educação, mas também por intelectuais das mais diversas proveniências. O escritor José Gomes Ferreira (na imagem) é um desses intelectuais que, em Portugal, de modo claro e incisivo a traduziu por belas palavras. No livro Tu, Liberdade! Antologia de Ficções em Prosa (Editorial Caminho, 1977, pp. 41-43) retomou o que escreveu na sua obra de estreia, publicada em 1918 e intitulada teluricamente, ao gosto da época, Lírios do Monte, da seguinte maneira:

"Aos 17 anos, imberbe e cândido, possuía na gaveta toda a Natureza metrificada e escrita num caderno a que pus este título botânico: Lírios do Monte.
E — zuncha! — graças a baba colaborante da família, dentro em breve o livro amarelecia nas montras com uma capa do Stuart (...). Eram duzentas páginas inspiradas no Parque Eduardo VII — única natureza selvática de Lisboa —, onde apareciam, várias vezes a palavra «bonina» (flor que nunca vi) a rimar com «colina» (...). O mais grave, porém, não sabem os senhores… Anos depois da publicação de Lírios do Monte, parti com um amigo em peregrinação de estudo para o campo (...). O meu companheiro (agora professor do liceu) servia-me de cicerone e ensinava-me, como podia e sabia, toda a sua ciência anedótica de sábio principiante.
— Olha: aqui tens os abrolhos. Já os conhecias?
— Não — respondia eu, em êxtase de ignorância lírica. — Só sabia que «abrolhos» rimavam com «olhos». E as boninas que rimavam com colinas? Onde estão? (...)
Um dia encontrámos num vale uma flor estranhamente roxa.
— Que é? — perguntei eu curioso. — Nunca vi esta flor!
— Nem eu — respondeu o meu companheiro de explorações, ligeiramente vexado.
E durante alguns minutos deu voltas e mais voltas à flor, a matutar na solução do problema. Talvez fosse isto, talvez fosse aquilo. Quem sabe se não seria outra coisa qualquer?
Ao cabo, a disfarçar a ignorância, meteu o mistério na algibeira, resolvido a classificar a flor em casa. Passados dias (meu Deus, que vergonha!) entra-me o meu amigo pelo quarto, a gritar:
— Sabes que flor é?
— Não.
— Não fazes ideia?
— Não.
— Faz um esforço!
— Não.
— Pois ouve e não desmaies: é um LÍRIO DO MONTE!
Quando me lembro deste episódio e folheio colérico, os ignóbeis Lírios do Monte, sinto ganas de ir à procura de todos os meus antigos professores do liceu par lhes pedir explicações e quebrar-lhes a cara. Quebrar-lhes a cara!
Vocês são responsáveis de tudo (...) de toda a minha ignorância do mundo exterior a empurrarem-me para a ilusão de só existir beleza dentro de mim. Obrigaram-me a decorar cartapácios pesados de botânica e não me mostraram as flores (...). Dir-se-ia que o mundo, para vocês, não passava dum tecido de irrealidades, palavras de cor, sons, imagens, linhas, abstracções e teoremas, idealizados por um astrónomo de génio a propósito dum planeta conhecido pelo nome Terra que existia nos confins do céu e nos obrigaram a decorar para não nos chumbarem em geografia.
Malandros!"

Imagem: Pintura Poeta: incendeia a espada!, de Mário Dionísio.

3 comentários:

setora disse...

A coisa tem limites.
Foi há quase 50 anos que com exemplos mortos/vivos (raízes, caules, folhas, flores)a professora de ciências nos passou informações. Não nos mostrou, nem podia,todas as flores do mundo. Aprender essa outra parte coube-me fazê-lo com a família, com os amigos e conhecidos, com os livros e comigo mesma. E não conheço, nem vou conhecer, todas as flores do mundo.
Fez a professora o que lhe competia - passou com eficácia a informação e deixou latente a curiosidade que aquele conhecimento prévio abria.

Fartinho da Silva disse...

O tal movimento da escola "moderna" tem como resultado aquilo que está a vista de todos! Quem pode pagar, oferece uma matrícula nos poucos colégios de qualidade (cujo ensino é o tal tradicional), quem não pode... oferece muitas actividades lúdicas, muita indisciplina e até violência e muito facilitismo na "escola" pública ou nos colégios guardadores de crianças e jovens!

António Daniel disse...

Quotidiano: Os gostos não se discutem; tudo é subjectivo; dente por dente olho por olho; Abril águas mil; os políticos são todos ladrões; a matemática não interessa para nada; o homem não foi à lua... A escola deve ou não fazer a ruptura epistemológica?

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