sexta-feira, 18 de setembro de 2009

Bolonha, o paradigma perdido


Novo texto de Rui Baptista, sobre a bolonhização do ensino superior (na foto, as "torres gémeas" de Bolonha):

“Trata-se evidentemente de reflexão, e a irreflexão parece-me uma das principais características do nosso tempo” (Hannah Arendt, 1906 - 1975).

São cumpridos dez anos sobre a Declaração de Bolonha justificativos de uma reflexão crítica, ainda que pontual. Mas porque, como reconheceu T.S, Eliot (1888 - 1965), “o tempo passado e o tempo presente, fazem todos parte do tempo futuro”, não encontro motivo para festejar a efeméride por entender ter sido desperdiçada uma ocasião soberana para uma correcta adaptação do modelo do ensino superior português ao Processo de Bolonha (daqui a apropriação que faço de um título de um livro de Edgar Morin, O Paradigma Perdido).

No que concerne aos dois primeiros ciclos do ensino superior, assim sucedeu contra o espírito original “da adopção de um sistema de graus comparável e legível: bachelor/ master” (p. 9 de um documento orientador, emanado do então “Ministério da Ciência e do Ensino Superior”). Ora, como muito bem reconheceu Adriano Moreira, “a problemática deixou de ser estritamente nacional, porque a regência política se europeíza, porque o mercado é transnacional, porque a competitividade se define entre grandes espaços, porque as pressões sistémicas ultrapassam o regionalismo soberanistas do passado” (Fórum Regional das Profissões Liberais, em 12/11/2004, com o título Bolonha e as Profissões Liberais).

Mas pela não certificação da tradução da palavra inglesa bachelor (bacharel), embora com ampla tradição no historial português - Eça de Queiroz foi bacharel em Leis pela Universidade de Coimbra - e adoptada, ainda que durante escassos anos após o 25 de Abril, é-se defrontado, na p. 17, com a incompatibilidade léxica da licenciatura portuguesa com os graus académicos definidos, à partida, para Bolonha (bachelor, bacharel, e master, mestrado).

De facto, na p. 44 , é feita referência à nossa Lei de Bases com os seguintes graus académicos: licenciado e mestre. Em nome de um disputa nacionalista, havia que levar avante estes desígnios “patrióticos” nem que para tanto se tornasse necessário a utilização de uma tabela de reconversão para uso nacional e estrangeiro, na língua dos diversos países aderentes ao Processo de Bolonha, estabelecendo a relação entre os graus académicos portugueses e dos outros países europeus, num processo já de si complicado em fronteiras lusitanas. A título de exemplo, em verdadeiro cocktail de indecisões processuais, passaram a existir, em território nacional, bacharelatos com génese em cursos médios, bacharelatos do ensino politécnico, licenciaturas universitárias e politécnicas antes de Bolonha (a.B.) e licenciaturas universitárias e politécnicas depois de Bolonha (d.B.).

Para dar o aspecto democrático de que a questão dos graus académicos não estava a ser cozinhada nos bastidores do Terreiro do Paço, na p. 22 encontra-se a seguinte referência: “Este processo exige a assumpção repartida de responsabilidade por parte do Governo, da Administração, das Instituições de Ensino Superior e das associações profissionais”. E aí se acrescenta, outrossim: “Neste sentido estamos a proceder a uma profunda discussão a nível nacional e a nível parlamentar”.

Julgo haver um certo desconhecimento de que em Portugal nem sempre se respeitam os direitos dos cidadãos, parecendo pairar até um certo prazer sádico dos seus altos dirigentes em auscultar os parceiros sociais possuidores de um estatuto de interesse público, para decidir precisamente o contrário. Todavia, fazendo uso do avisado conselho de Adriano Moreira em “estar nas decisões para não vir a ser objecto apenas delas”, realizou o Conselho Nacional das Profissões Liberais, em 12 e 13 de Novembro de 2004 e representação das nove ordens profissionais existentes (médicos, engenheiros, advogados, médicos veterinários, farmacêuticos, médicos dentistas, arquitectos, biólogos e economistas) um seminário sob o sugestivo título de “Reflexos da Declaração de Bolonha”.

Após longa e aturada reflexão, no que concerne aos graus académicos pós-Bolonha , todos os participantes se manifestaram em bloco (passe a redundância) contra a atribuição do grau de licenciado para o ciclo inicial de estudos superiores, defendendo o de bacharel. A este facto, não deverá ter sido estranho ter pairado no espírito dos presentes uma licenciatura desvalorizada e desacreditada, órfã do “prestígio da Universidade que lhe deu a primeira credencial de título académico nobilitante”, ainda segundo Adriano Moreira. Este académico, usando a ironia como forma de argumentação não se conteve mesmo em afirmar: “Se um médico, com três anos de formação, me receitasse uma aspirina, eu não a tomava!”

Porque, no dizer do povo, mais vale tarde do que nunca, para encurtar razões, assim como as árvores morrem de pé, também o grau de licenciado antes de Bolonha, deveria ter sido extinto com a dignidade que lhe foi atribuída no passado, não sendo desvalorizado, ou sequer beliscado, relativamente aos mestrados bolonheses. Uma década de Bolonha devia ser mais do que suficiente para haver uma mea culpa da governação portuguesa passando a atribuir ao 1.º ciclo de estudos superiores o grau de bacharel.

Não poucas vezes, o desejo de ser diferente ou original tem o seu quê de caricato. Parece-me ser este o caso.

Rui Baptista

3 comentários:

joão boaventura disse...

Respigo doDiário de Notícias de 29 de Março deste ano, esta prosa elucidativa:

"A maioria das universidades portuguesas não estão a cumprir os critérios de Bolonha. Os principais problemas são a falta de revisão dos currículos e dos métodos pedagógicos e a existência de cursos pouco virados para o mercado de trabalho. Problemas que os especialistas atribuem à pressa em aplicar a reforma, sem se ter levado a cabo uma discussão como a que está a ser feita em Espanha."

E o dirigente do Sindicato Nacional do Ensino Superior esclareceu então que:

"O Processo de Bolonha foi uma oportunidade perdida para reformar a fundo o ensino superior."

De Bolonha nem bom vento nem bom espavento

Rui Baptista disse...

Prezado João Boavemtura:

Julgo que o Processo de Bolonha espelha a inépcia dos nossos governantes em lidarem com os seus próprios erros e outros que vêm de longe, se enquistam e perpetuam como vacas sagradas que se passeiam sem serem enxotadas nas veredas do imobilismo nacional.

O Processo de Bolonha foi a maneira de dizer que se fez o que se não fez. No mínimo uma reflexão, como aquela que João Boaventura, cita muito a propósito, e que está a ser feita em Espanha ( contrariando o pessimimo de Eça quando a este país vizinho se referiu: “A Espanha, essa boa amiga que dorme ao nosso lado o sono da indiferença, tendo por travesseiro os mesmos montes e por lavatório os mesmos rios”). "Ad contrario", em Portugal fez-se o diagnóstico da situação a olho nu e por apalpação, assumiu-se a curandice com ares de sabichão e aplicou-se a terapêutica sem delongas ou hesitações.Com diria Almeida Santos, destacada figura do Partido Socialista, contentámo-nos em "pôr remendos em pano velho".

Repare João Boaventura que o Processo de Bolonha deve pesar na consciência de muitos dos nossos políticos, a ponto de se tornar um assunto, um tanto ou quanto, tabu mesmo para a opinião pública. Políticos que se acobardam perante interesses instalados para não porem em causa as suas longas e desastrosas carreiras de “devoção à causa pública” naquilo que podemos ter como a “dança das cadeiras” dos antigos bailes de associações de bairro. E em que sobejam sempre um ou mais participantes que cadeiras.

O seu comentário, joão Boaventura, não terá sido uma pedrada no charco da indiferença nacional, mas foi, sem dúvida, um valioso alerta para os dislates de um país que "decreta" as Novas Oportunidades ( que eu, em post anterior crismei de novos oportunismos) e o Acesso ao Ensino Superior para maiores de 23 anos, em que o BI substitui conhecimentos básicos que a própria instrução primária ministrava através do LEC (ler, escrever e contar).

Será altura de invertermos a pirâmide do nosso sistema educativo remetendo muitos dos nossos licenciados para os saberes da antiga 4.º classe? Para grandes males, grandes remédios.

Rui Baptista disse...

Apostila ao comentário anterior:

De Espanha nem sempre vem mau vento. Haja em vista as lojas de vestuário, como a Zara, que ajudam a classe média/baixa a vestir decentemente em período de declarada crise económica em que os “os revolucionários em Portugal já não são o que eram; agora identificam-se pelos seus fato listados e telemóveis topo de gama” – Finantial Times (10.03.2004).

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