quinta-feira, 23 de abril de 2009

"Em nome de uma falsa pedagogia"

Maria do Carmo Vieira é professora de Português do Ensino Secundário. Ouvindo-a ou lendo o que escreve, percebe-se, de imediato, ser uma daquelas pessoas que ama, no sentido filosófico clássico, a literatura e o ensino.
Sabemos, no entanto, que nem sempre este duplo amor, se é mesmo amor, traz paz a quem ama.. No caso, penso que não se pode dizer que Maria do Carmo Vieira viva em paz, pois sabe bem, tem nítida consciência, que as nossas crianças e jovens estão a ser privados da beleza dos textos literários e das possibilidades cognitivas, emocionais e morais que a sua abordagem didáctica abre. Sendo que esta verdade é ainda mais verdadeira para aqueles a quem a sorte não sorriu à nascença.

O que pensa sobre este assunto reuniu-o num belíssimo livro acabado de sair pela mão da Quimera, e a que deu o título: A arte mestra da vida: reflexões sobre a escola e o gosto da leitura. Nele dá conta bem documentada da eliminação dos programas escolares de alguns dos nossos melhores escritores, que deixaram, portanto, de constar nos manuais. Dá ainda conta de pseudo-estratégias pedagógicas “para os tornar interessantes” e “úteis aos alunos no seu quotidiano”, que mais não fazem do que lhe retirar a essência.

Em nome de uma falsa pedagogia, há quem acuse a «dificuldade dos textos literários que são entregues às crianças» (inclui-se neste rol o poema As fadas de Antero de Quental) e defenda a sua eliminação, ou a sua simplificação em ridículas adaptações e sensibilizações para a leitura de… Sei por experiência, enquanto professora e também educadora, que as crianças podem não compreender o significado de muitas palavras que ouvem, mas sentem a sua beleza e a sua musicalidade, guardam-nas como mistérios ou, curiosas, questionam o seu significado. É assim que, numa diversidade de épocas e séculos, lhe podemos ler poemas de Eugénio de Andrade, Alberto Caeiro, Pessoa (ortónimo), Cesário Verde, Guerra Junqueiro, Antero de Quental ou Luís de Camões (…).
Também a escritora e professora Luísa Dacosta pode relatar um sem-número de experiências sobre a boa receptividade dos seus alunos dos 5.º e 6.º anos a autores portugueses a autores portugueses e estrangeiros, como o Padre António Vieira, Eça de Queiróz, Cecília Meireles, Raul Brandão, Graciliano Ramos, Saint-Exupéry, Hemingway. Infelizmente, continuamos, sob orientações institucionais, a menorizar os nossos alunos, a atrofiar as suas capacidades e a negar-lhes a cultura a que têm direito, tornando-os vítimas de um ensino que os coloca ignorantes e indefesos perante uma sociedade exigente e desumanizada. Esta atitude oficializada ofende a nobreza da pedagogia, em nome da qual se permitem as mudanças mais absurdas e atentatórias da inteligência e da sensibilidade dos professores e dos alunos de todos os níveis de ensino.”

Este trabalho de Maria do Carmo Vieira está longe, porém, de ser um trabalho desencantado é, antes, uma reflexão lúcida e acutilante que nos alerta para a necessidade de (re)pensarmos os caminhos que temos traçado para a educação, de modo que, como recorda na sua página pessoal, possamos dizer: “Amanhã tudo será melhor, eis a nossa esperança” (Voltaire).

19 comentários:

xana disse...

É preciso que todos os que fazem a escola se unam...parem de murmurar em surdina...gritem mais alto...um pouco mais...se partilhem.A cultura partilha-se assim , como uma dádiva que passa de mão em mão, sabendo que alimenta o outro e que esse outro o vai saborear, degustar e querer sempre mais. SEI que as nossas escolas estão cheias de jovens que despertarão para a Arte se a conhecerem...apenas esperam que o professor abra com eles as portas.Sigamos, pois, firmes.

Marco Oliveira disse...

Obrigado por este post!
:-)

Osame Kinouchi disse...

Helena, polemizando um pouco, acho que se tais obras fossem não apenas excluidas mas na verdade proibidas aos adolescentes, acho que seriam muito mais lidas. Os adolescentes querem transgressão, e não leituras obrigatórias impostas por pais e professores...

Aqui no Brasil as crianças acabam detestando Machado de Assis por ser obrigatório. Só alguns privilegiados, anos mais tarde e passado o trauma, apaixonam-se de novo pelo mestre.

Anónimo disse...

Osame Kinouchi

É 1 pouco verdade o q diz. E o q propõe - não sei se propõe, mas estou a assumir - é q se faça psicologia reversa para se atingir o q se pretende.

Numa consulta de psicoterapia, por exemplo, é justificável. Os fins justificam os meios. A uma escala + global a coisa deve levantar problemas de ética e outros. Senão veja: para tornar 1 escritor amado teria primeiro q o tornar oficial para depois oficialmente o poder proibir.

E talvez funcionasse até os jovens perceberem a manha, o q n deveria demorar muito. E aí voltava ao início com a agravante de ter agora q viver com a não-realidade. O q é um traço um pouco esquizofrénico.

cps

Anónimo disse...

Já não há paciência para estes discursos!
Não me posso esquecer do trabalho que tive e que temos sempre de ter em limpar o trauma do secundário e do básico para poder agora dar o valor a Pessoa, por exemplo.
Enquanto aluno, em todas as escolas onde estive e na faculdade também, tive e temos maioritariamente maus professores embora reconheça que alguns ajudaram-me a crescer mas esses são raríssimos de encontrar.
Estamos cansados deste tipo de discursos perigosíssimos e irresponsáveis relativos à escola e acima de tudo à cultura porque AFASTA AS PESSOAS do conhecimento como sempre afastaram.
Vocês têm a capacidade de tornar o conhecimento aborrecido, monótono e monocromático.
Não imaginam o esforço e a sorte necessária para descobrir depois da vossa castração, a magia da ciência ou o segredo das palavras.
As pessoas na sua maioria e sempre opostos aos vossos filhos, dizem dos que gostam de física ou de palavras que são chatos, aborrecidos, que vão ficar malucos…
A culpa é vossa

arte

Helena Ribeiro disse...

... e eu posso relatar uma experiência riquíssima com alunos de 8º ano a interpretar Herberto Helder, com a miha mediação...

e já agora, também deixo o testemunho de que os alunos jamais esquecem uma boa obra literária...

Na verdade, os alunos só se interessam verdadeiramente perante a qualidade. Esta é a minha experiência.

Anónimo disse...

talvez tenham tido a sorte de ter uma rara rara bom professor(a)
arte

Anónimo disse...

digo, raro

Rolando Almeida disse...

O que é interessante perceber (e muito lamentável) é que o problema da desvalorização dos curriculos e programas de ensino é generalizado a todas as disciplinas.

Gustavo disse...

O anônimo acredita que deve-se culpar o professor quando o aluno não deseja aprender?

O anônimo não sabe que a maior parte dos professores é apaixonada pelo que leciona (ou não se tornariam professores) e que ficam tristíssimos quando percebem que há alunos que não se interessam pela cultura que oferecem.

A culpa não é do professor: é do aluno que desejaria aprender tudo de modo fácil e rápido, como se estivesse a tomar um sorvete. Mas a cultura não é sorvete: para tê-la em alto nível, é preciso esforço intelectual.

maria disse...

Não concordo. Felizmente não estudei em Portugal , nem tive de ler em pequenina mastroncios( era o que acharia nessa idade). Lia La fontaine , contos de fadas , Enid Bliton , Jack london , o Salgari , o tio patinhas , o super homem , o rip kirby ,a ilha do tesouro em quadradinhos e por aí fora. Na escola líamos 2 ,3 , 4 , 10 páginas de Cervantes , Quevedo ou outro qualquer assim para discutirmos o estilo. Jamais o frete inteiro. Se de pequena fosse obrigada a aturar o Pessoa duvido que alguma fez me tivesse convertido em leitora conpulsiva.

Anónimo disse...

Maria, inteligente, objectiva e clara; dá gosto.
Quanto ao Gustavo tenho a dizer que o seu raciocinio anda "a modos que" para o lado do mundo das fadas e "sorvetes" cor de rosa e portanto melhor será ao que escreveu "no comments".

arte

Rui Baptista disse...

Parabenizo Maria do Carmo Vieira e Helena Damião. A primeira pela publicação do seu livro "A arte mestra da vida:reflexos sobre a escola e o gosto da leitura"; a segunda pela chamada de atenção para uma obra que merece ser lida sem qualquer mas...em que os portugueses parecem ser pródigos.

Numa época de laxismo do sistema educativo (v.g., “Novas Oportunidades” e “Acesso ao Ensino Superior para Maiores de 23 anos”), a distinta autora do livro de que aqui se fala, é uma Mestra que tem lutado por um ensino de exigência da Língua Portuguesa que muito a dignifica e que não pode deixar de me trazer à memória um pensamento de Mao-Tzé-Tung: "Um caminho demasiado plano não desenvolve os músculos das pernas".

A leitura que a Dr.ª Maria do Carmo Vieira defende, atrevo-me a pôr as mãos no fogo por este meu testemunho, nada tem a ver com a leitura dos "Lusíadas" do meu tempo de liceu em que éramos inclusivamente obrigados a dividir orações de algumas das suas estrofes.

De lá para cá passou-se do oito ao oitenta, havendo alunos universitários de Letras que mal dominam, ou não dominam mesmo, as obras dos nossos escritores do século XIX que são património da própria Humanidade.

Numa cruzada em que todos nós nos devíamos alistar tem esta docente criado incompreensões e prejudicado a sua saúde. Saibamos, pelo menos, agradecer-lhe a sua luta sem quartel, mesmo aqueles que não se querem chamuscar ou sentir o odor acre da pólvora. Bem-haja, minha Senhora!

Helena Ribeiro disse...

Para o Senhor Anónimo, 24 Abril, OOH26

Caro Senhor Anónimo:
O meu comentário só tinha o objectivo de "criar pontes" com perspectivas aqui presentes que manifestam a inportância inequívoca da boa literatura. Claro que é condição "Sine Qua Non" que o professor que ensina/mostra literatura, tem de ser um bom leitor.

Mas não pretendo, de maneira nenhuma, entrar na questão do bom/mau professor. Pretendo trocar/divulgar ideias.

Por uma questão de atenção, reparei que os alunos, em contexto, lembram-se sem dificuldade nenhuma de pormenores de bons textos/livros, e de maus textos/livros, nunca se lembram, apenas uma ideia vaguíssima, turva. Foi o que constatei.

Boa noite

Helena Ribeiro disse...

Resposta a Osame Kinouchi, 23 Abril, 22h58

Caro Senhor Osame Kinouchi,

A sua proposta corria o sério risco de ter o efeito contrário, é que os miúdos não são NADA parvos...

Além de que... a relação que se estabelece com as pessoas tem de ser de honestidade e sinceridade, sem isso, não há bom ensino.

Concordo consigo no desejo de "transgressão" dos adolescentes. Tão vital para a continuação da espécie humana... quem não se lembra de si próprio, nessa altura...?

Boa noite

Helena Ribeiro disse...

Caro Senhor Rui Baptista,

Admiro o seu desejo de agradecimento a uma autora que preza. É um acto digno.

Mas em dada altura do seu discurso, captei o que me parece ser uma contradição. Passo a expor, com todo o respeito:

A frase de Mao-tzé-tung não se coaduna com esse "alívio" de já não se dividir orações, n'Os Lusíadas...

A compreensão sintáctica da estrofe é fundamental para se poder ler a obra em causa. E com gramática básica, é um "enorme desenvolvimento para os músculos das pernas" que eles (os alunos) gostam de praticar.

Mas, o mais importante: sem isso, eles próprios não aprenderão a ler, para depois compreender e por aí afora...

PS - A expressão "Bem-haja" também me é muito grata.

Boa noite

Rui Baptista disse...

Prezada Senhora Dona Helena Ribeiro
Minha Senhora:

Escrevi o meu texto, até posso reconhecer, “com razões que a razão desconhece” (Blasé Pascal), tendo-me deixado levar pela recordação dos meus tempos liceais em que “Os Lusíadas”, passavam por alguns de nós sem que nos apercebessemos verdadeiramente da cultura do Épico e as metáforas utilizadas pelo conhecimento profundo da Mitologia (espero não estar a dizer nenhum disparate de que relevo a não intenção, mas que a minha formação derradeira liceal no âmbito das ciências pode, também, ela desculpar, ainda que em parte).

O paradoxo que detecta no meu texto pode também ele ser encontrado no meu desagrado pelo maoísmo e, simultanemente, citar Mao. Justifico a citação. Numa época em que o facilitismo, o “fero e horrendo” facilitismo, que transformou o ensino, de todas as disciplinas, numa paródia que, passe a antítese, nos faz chorar pelo futuro dos nossos filhos e dos nossos netos, ou mesmo até de gerações que se projectam num futuro mais distante, se nada for feito para o tornar num assunto nacional sério, procurei respaldo numa frase que encerra em si uma sabedoria milenária que nem a chamada “Revolução Cultural” foi capaz de arrancar das suas raízes. Médicos de pé descalço foram gerados por ela; alunos de pé descalço estão a sair às fornadas das nossas escolas básicas, secundárias e, até, superiores. A própria Universidade (hesitei se deveria ter utilizado a letra maiúscula,neste contexto), baluarte da Cultura, por vezes, deixou de o ser para se tornar num “negócio da China”.

O papel de profunda revolta íntima, mas de acção constante no campo de uma luta diária, da autora do livro, que mereceu o meu comentário, é como que uma esperança, uma grande esperança, contra o clima que se abateu sobre o sistema educativo de um país alfobre de nomes grandes no âmbito da Cultura de uma verdadeira cultura literária, cienífica, etc., de que todos os professores, de todos os graus de ensino, se devem fazer lídimos representantes num clima que ventos políticos soprados da 5 de Outubro tudo têm feito por destruir, destruindo o seu importante papel social, cultural e profissional. Devemos estar gratos, portanto, outrossim, ao seu comentário, minha Senhora, e dessa gratidão me faço humilde personagem pelo sua chamada de atenção para a minha “contradição”. Bem-haja.

Respeitosamente.

Helena Ribeiro disse...

Olá Rui Baptista,

..."cultura do épico e as metáforas utilizadas pelo conhecimento profundo da mitologia" - disparate? Claro que não, como o Rui bem sabe.

E humildemente também agradeço o seu comentário com o qual partilho bastantes coisas.

Também gosto muito de "Seja Bem-vindo quem vier por Bem"! Ainda hei-de ter esta frase à entrada da minha casa no campo... se um dia a tiver...

Rui Baptista disse...

Prezada Helena:

Grato pela atenção que dedicou aos meus comentários e pela lucidez das suas disconcordâncias sempre devidamente fundamentadas. Ao mesmo tempo que cumpriram as condições que são pedidas para o envio de comentários, as suas oportunas intervenções permitiram que clarificasse (ou, pelo menos, tentasse) as minhas posições.

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