domingo, 18 de janeiro de 2009

ENTREVISTA DE NUNO CRATO AO NOTÍCIAS MAGAZINE


Com a devida vénia ao "Notícias Magazine" transcrevemos o cerne da entrevista que Sarah Adamopoulos fez a Nuno Crato, matemático e divulgador científico, e que foi publicada hoje nessa revista, que acompanha o "Jornal de Notícias" e o "Diário de Notícias":

"(...) Todo este discurso oficial, institucional, em torno da ciência e da matemática, revela outras preocupações. Que têm precisamente a ver com a deficiente cultura científica da generalidade da sociedade portuguesa.
A nossa sociedade tem um défice de cultura científica bastante notório, e que aliás já foi medido - tem-no sido, pelo Eurobarómetro, por exemplo, através de inquéritos.

Inquéritos à população? Inquéritos de rua?
Não sei se são inquéritos de rua, mas são inquéritos dirigidos a todo o tipo de pessoas e que nos dão um retrato daquilo que a população sabe em geral sobre ciência. São inquéritos que começaram por ser feitos nos EUA e em países anglo-saxónicos, e que depois se estenderam à Europa Continental. Em que se perguntam coisas tais como “É verdade que o sangue circula nos pulmões” ou “É verdade que se respira pelo fígado” (risos). E esses inquéritos revelaram, de forma muito preocupante, um défice de cultura científica por parte das populações europeias. Défice que não se conhecia. Habituámo-nos durante a década de 90 a rirmo-nos dos inquéritos americanos que revelavam que uma percentagem muito significativa da população norte-americana julgava que o Sol andava à volta da Terra, por exemplo. Mas quando no fim dos anos 90 fizemos os mesmos inquéritos na Europa, verificámos que a situação europeia era igual ou pior. Países habitualmente vistos como muito cultos, como é o caso da França, ficaram muito mal classificados nesses inquéritos. Por isso que tudo o que seja colocar a cultura científica no palco, dá-la a ver, é altamente positivo. Porque a ciência é parte da vida. Habitualmente, faz-se uma divisão entre a cultura e a ciência que não é muito certa. Colocar a cultura científica na ordem do dia é muito importante. Nos cartazes, na televisão, no teatro, no cinema, na rua, nos jornais. E este movimento em torno da “Ciência Viva”, que tem expressão em vários museus de cência e nomeadamente nos centros “Ciência Viva”, é algo muito importante que aconteceu em Portugal, e que está a dar frutos. Daqui a algum tempo vamos ter muitos mais jovens interessados na ciência, e com interesse em seguirem vocações científicas, ou, pelo menos, a prestarem atenção à ciência. Mas é um movimento de sensibilização. Que não pode suprir o défice derivado do ensino formal.

E que se reflecte na cultura geral das pessoas.

Temos jovens todos os dias sentados na escola durante 9, ou 12, ou mesmo 15 anos, jovens que lá estão supostamente a aprender coisas, mas que na verdade pouco sabem. E não numas tardes a aprender ciência que isso se resolve. A questão da cultura científica e da cultura literária é uma velha questão: conhece-se o texto [1959] que originou este debate, que é um texto de C. P. Snow [cientista, escritor e político inglês, autor de «As duas culturas e a revolução científica”], e eu julgo que a questão não se alterou substancialmente. Ele queixou-se da divisão entre a cultura literária, ou humanística, a dos “intelectuais literários”, como ele dizia, e a cultura científica. Apontou o dedo aos ditos intelectuais literários por não considerarem a ciência como uma cultura, e acharem que a cultura se limita às humanidades. Tudo isso se mantém hoje em dia, e é um pouco triste que assim seja. As coisas têm vindo a mudar, ainda assim, graças à acção de pessoas da ciência, cientistas e divulgadores da ciência, no sentido de mostrar que a ciência é parte da cultura. Faz-se teatro sobre o Galileu, em que se discute a polémica de Galileu com a Igreja, e é muito bom que a Ciência também possa ser tratada pelo teatro.

Tem tido um discurso que considero um bocadinho duro relativamente àquilo que designa por pedagogia romântica. Suponho que querendo significar uma pedagogia assente em princípios vagos, literários se quisermos, e que o Nuno enquanto matemático não reconhece como válidos.
Quando me refiro a essa pedagogia romântica, faço-o no sentido filosófico, no sentido do Rousseau, ou do Heidegger, ou até de Nietzsche. Romântico no sentido do poder da vontade, do poder do eu, por oposição ao realista filosófico. Não é uma questão que pressuponha qualquer tipo de desprezo pela literatura romântica, ou pelo período romântico. Gosto imenso dos românticos, gosto de lê-los, leio o Camilo Castelo Branco, e não tenho nada contra o romantismo na música. Tem a ver com uma visão sobre a possibilidade de encarar e de fazer a educação de uma determinada maneira. Não tem a ver com a educação científica ou com a educação literária. Aplica-se às duas. Se abrir um dicionário anglo-saxónico de filosofia e procurar por romantismo, vai encontrar Rousseau, Heidegger, a ideia do eu a sobrepor-se às necessidades, a possibilidade de a vontade poder sobrepor-se aos constrangimentos do mundo real, tudo isso está lá, englobado nesse mesmo conceito.

Conceito que enfatiza a motivação, a força de vontade.
Precisamente. A ideia também de que tudo vem da motivação, de que toda a disciplina deve ser interior, de que a avaliação não é necessária porque o que interessa é o gosto pelo saber, etc. Não se trata portanto de opor o Camilo ao Eça! Na leitura há a ideia romântica que defende que as crianças devem primeiro ser motivadas para ler. Como se isso não acontecesse através do próprio exercício da leitura. Nem tudo tem um caminho directo, único, como acho que os românticos pensam.

Poderia ou não ser interessante tentar um cruzamento construtivo entre essa pedagogia (que apesar de tudo por algumas razões continua a ser validada) e uma visão mais científica, mais objectiva, se quisermos, da educação?
Estou completamente de acordo com isso. Julgo que nós devemos, em educação, tentar o que funciona. E o que funciona é uma mistura de métodos, o que é diferente do método único. O que a pedagogia romântica e construtivista defende em relação à educação é justamente o método único. E o que eu tenho defendido é o contrário. Isto é um debate internacional, estamos a discutir aquilo que se discute no mundo inteiro, não são ideias minhas. As correntes da pedagogia moderna com que mais me identifico são as que defendem que é preciso cruzar os métodos. Aprender aspectos positivos da pedagogia construtivista, do ensino não-directivo, do ensino directivo, tentando praticar um equilíbrio pedagógico partindo de todas essas ideias.

Há alguma escola da pedagogia, algum movimento pedagógico que o interesse, e que queira neste âmbito referir, por oposição a essa pedagogia de que fala?
Kilpatrick [William Heard Kilpatrick, pedagogo], que é talvez das pessoas mais influentes em educação no século XX, um norte-americano contemporâneo do Dewey [John Dewey, filósofo e pedagogo], que foi o homem que inventou o método projecto. O Spencer [Herbert Spencer, filósofo inglês], que é um homem mais antigo. O Spencer diz que não se pode ensinar aquilo que não se explica para que serve. A meu ver, o problema dessas ideias românticas é que apontam para uma via única. O construtivismo extremo defende que o ensino só vale se for construído pelo estudante, desprezando portanto a transmissão de conhecimentos. A teoria das competências, nesta forma extrema que tem sido adoptada em Portugal, diz que o conhecimento por si não vale – só vale se for transformado em acção. Tudo isto são radicalismos muito grandes, de correntes pedagógicas que não fazem esse equilíbrio que defendemos. Quando estamos a fazer uma síntese de ideias diversas, estamos a dizer que nenhuma delas está certa por si só. Se estamos a recuperar aspectos da escola participativa e do movimento pela escola activa, estamos a dizer que a escola activa sozinha não serve. Estamos a dizer que é preciso por um lado dirigir os alunos, e por outro estimulá-los, de forma a que por eles mesmos descubram coisas e participem – enquanto lhes ensinamos outras coisas.

Talvez esta crise por que está a passar a nossa Escola Pública não deva ser encarada como um fenómeno 'local'.

É uma crise que está a acontecer na generalidade dos países ocidentais. Nos EUA também, sim. Mas os EUA têm uma vantagem: e que é a de precisamente serem estados - unidos mas autónomos. É um país com vários países, onde coexistem muitas coisas. Onde não há um Ministério da Educação no sentido em que nós temos. Quando num sítio se faz mal, noutro faz-se bem. E esse tipo de concorrência não deixa nunca que ideias dogmáticas como estas que têm aparecido na Europa dominem completamente o sistema educativo. Em Portugal isso tem sido gravíssimo, porque essas ideias desorganizam o ensino. Não por serem postas em prática. Julgo que há uma série de factores sociais que entram aqui em jogo, mas que eu, não sendo sociólogo, não sei analisar. Também não sei se os sociólogos sabem. (risos) Mas há uma série de factores que têm a ver com dinheiro, com a facilidade com que se obtêm as coisas, com a riqueza, com o consumo também, sim, com o facto de tudo parecer muito simples, com o facto de eu querer fazer uma conta e ter um computador que faz logo essa conta... quer dizer, há aqui um conjunto de factores, de ordem social, que determinam este laxismo do mundo ocidental em relação à educação. Olhamos para a China ou para o Japão e eles não têm estes problemas. Têm um ensino muito tradicional, por vezes até demasiado no meu entender, mas que funciona. Curiosamente, no caso dos japoneses, eles têm esse ensino muito tradicional mas que ao mesmo tempo é muito participado.

Mas na cultura japonesa há premissas que lhes servem a eles mas que a nós não nos dizem culturalmente nada. O mestre que ensina o discípulo, o valor do silêncio, do tempo, do sacrifício, da perseverança, de uma certa dureza, que a nós nos aflige muito. Os mestres são de uma extrema dureza por vezes para com os seus discípulos. Uma dureza que nos choca. São premissas culturais, que jamais funcionariam na nossa sociedade. Uma sociedade em que as crianças são hipervalorizadas, no pior dos sentidos, e em que se desvalorizam os mais velhos.
Receio que o mundo ocidental, a Europa em particular, esteja a cometer um suicídio em relação a muitas coisas. Por outro lado, há o problema da orientação pedagógica. As correntes pedagógicas radicais que tiveram muito peso nos EUA e na Europa, e no mundo ocidental de uma maneira geral, não tiveram peso nenhum na China, nem no Japão. Mas influenciaram negativamente o ensino. E fizeram-no não tendo sido aplicadas, porque são utópicas. Irrealistas.

O que quer dizer com suicídio do mundo ocidental?

A falta de valor que é dado ao conhecimento, a ideia de que todo o conhecimento só interessa se conferir competências, a simplificação do ensino que é o processo de Bolonha...

Refere-se a uma espécie de negação da própria essência do conhecimento? Como se o conhecimento que não pode ser aplicado não tivesse valor?
Exactamente. Tudo o que está a acontecer com a transferência do conhecimento científico e tecnológico para os países asiáticos... é dramático. Vou-lhe contar uma história que se passou comigo nos EUA, onde vivi muitos anos. Quando fui para lá, como estudante estrangeiro de doutoramento, tive um mês de lavagem ao cérebro por pedagogos modernos. Uma das coisas de que eles queriam convencer-nos era: enquanto nos países de onde nós vínhamos o mestre sabia e o aluno aprendia, ali não, ali todos aprendiam. Recordo um aluno chinês, a olhar para um desses lavadores de cérebros, completamente boquiaberto, e apreensivo, perguntando se ali não eram as pessoas que sabiam que ensinavam as outras...

Se o ensino está dominado por um tipo de pensamento pouco científico, será que nós aqui poderíamos imaginar uma solução para um ensino mais ... matematizado? (risos)

(risos) Não creio! Embora ache que a atemática não tem destaque no nosso tipo de ensino. As disciplinas de atemática que existem hoje no ensino básico e secundário são baseadas no conceito de introdução à matemática mas esvaziaram-se de uma série de coisas que são básicas na matemática: as definições claras, as deduções, as demonstrações, os teoremas... tudo aquilo que é mais abstracto, mais formalizado, mais duro, e que é parte integrante do edifício matemático, está pouco a pouco a desaparecer do ensino básico e secundário. As crianças falam muito pouco em termos de operações, porque tudo é dado em contexto, com piscinas e bananas e prédios e laranjas.

Uma urgência no princípio da aplicação, que não o da conceptualização.

Exacto. No secundário isso ainda é mais grave, porque há uma série de conceitos matemáticos novos que são dados de forma superficial, o que impossibilita que os alunos consigam pouco a pouco entrar no espírito hipotético-dedutivo da matemática. A atemática distingue-se de outras disciplinas por ter essa componente hipotético-dedutiva, baseada em pressupostos variáveis que determinam que se possa deduzir rigorosamente a partir deles. E isso está a 99% esvaziado do ensino secundário.

Pensa que isso também é verdadeiro para outros países?
O nosso país exagera. O ensino francês, apesar de ter as mesmas pedagogias, é muito mais rigoroso do que o nosso. Em Espanha o ensino da Matemática é também muito mais rigoroso, e os alunos aprendem muito mais.

Não acha que essas dificuldades com a abstracção são também válidas para a leitura?

Na leitura também têm predominado uma série de coisas erradas. Primeira: a ideia de que para aprender a ler coisas do dia-a-dia, como sejam posologias de medicamentos, jornais ou manuais dos automóveis, é preciso ler posologias de medicamentos, jornais e manuais dos automóveis. E desaparece a literatura. Mas eu penso que um aluno que saiba ler um romancista, sabe ler tudo o resto. O texto literário tem também essa função, julgo. O romantismo tem ainda outra coisa: na leitura há três etapas fundamentais: a descodificação dos sinais (saber formar as palavras e entendê-las); a compreensão do conteúdo; e a compreensão aplicada, se quisermos, ou seja, sermos capazes de questionar o que lá está escrito, a interpretação. No nosso ensino, insiste-se na primeira e na última, e muitas vezes pede-se aos alunos que interpretem coisas que eles ainda não perceberam! Essa ideia de que só interessa a leitura criativa, crítica, é uma ideia completamente idiota. Porque antes disso, é preciso passar pela compreensão literal do texto. A pedagogia romântica ainda por cima não percebeu que as aplicações são muitas vezes chatas e as abstracções são bonitas e interessantes. É muito mais interessante ler Literatura do que o regulamento do Big Brother, como apareceu num manual de português! É, para além do mais, uma infantilização paternalista, facilista, completamente errada, que habitua os alunos a ler pedaços de textos e a fazer leituras simplificadas para conseguir criticar. Mas é preciso passar pela leitura. Antes ainda de desenvolver as tais competências de que nos falam incessantemente. (...)"

18 comentários:

Anónimo disse...

"O que a pedagogia romântica e construtivista defende em relação à educação é justamente o método único."

Se há coisa em que existe mais de que uma opinião é precisamente na questão dos métodos de ensino. A expressão "métodos activos" existe no plural pela simples razão de que diz respeito a uma pluralidade de métodos.

“As correntes da pedagogia moderna com que mais me identifico são as que defendem que é preciso cruzar os métodos. Aprender aspectos positivos da pedagogia construtivista, do ensino não-directivo, do ensino directivo, tentando praticar um equilíbrio pedagógico partindo de todas essas ideias.”

Será que estou a detectar uma nuance no discurso do Professor Nuno Crato? Então a pedagogia construtivista e o ensino não-directivo têm aspectos positivos? Minha nossa!!! Até parece o Papa a defender que, nalgumas circunstâncias, é moralmente admissível recorrer ao uso do preservativo.

Anónimo disse...

"Habituámo-nos durante a década de 90 a rirmo-nos dos inquéritos americanos que revelavam que uma percentagem muito significativa da população norte-americana julgava que o Sol andava à volta da Terra, por exemplo. Mas quando no fim dos anos 90 fizemos os mesmos inquéritos na Europa, verificámos que a situação europeia era igual ou pior."

Quando será que o(s) físico(s) de serviço explicam que esta pergunta não faz o mínimo de sentido, pelo menos colocada nesta forma.

O Sol anda à volta da Terra e a Terra à volta do Sol. Depende do referencial. Até existem referenciais em que ambos rodam. A única coisa que distingue (na mecânica clássica) o referencial Sol (co-movimento sem rotação em relação às "estrelas fixas") do referencial Terra é que o primeiro está muito mais próximo de ser inercial e (quase) que coincide com o centro de massa do sistema.

Na relatividade geral nem sequer existe diferença qualitativa (como no referencial inercial na mecânica clássica) entre esses dois sistemas de coordenadas. É tudo igual ao litro tirando o facto de as contas serem mais simples de fazer num sistema do que noutro.

Como eu me divirto quando oiço ateus a dizerem a fanáticos religiosos (de outro tipo) que estes ainda julgam que o Sol gira em torno da Terra.

E ninguém esclarece isto a sério e depois vêm falar de cultura científica. O que este pessoal entende por cultura científica é papaguear o que alguém diz, mais nada.

Pinto de Sá disse...

O ensino exigente, autoritário, impondo o silêncio na aula, o sacrifício do estudo, o esforço, era precisamente o que tínhamos antes do 25 de Abril.
Tornou-se tabu falar do ensino antes dessa data. Ao ponto de o próprio 1º Ministro dizer que os "professores há 30 anos que não eram avaliados". Ora o facto, por exemplo no que se refere á avaliação dos professores, é que jamais em tempo algum os professores foram avaliados! Quem era avaliado antes do 25 de Abril eram os alunos, com exames nacionais regulares!
Tudo isto se tornou um tal tabu que se tornou uma cortina incontornável.
E no etanto, todos os mais velhos sabemos como devemos o que somos intelectualmente a esse velho ensino...

Anónimo disse...

"Com a devida vénia trnscrevemos o cerne da entrevista"

Vénia? A quem? A quê?

Trnscrevemos o cerne??

Portugal: Um país de amigaços e gajos porreiros.

Anónimo disse...

Portugal, um país de imbecis anónimos que nunca dão a cara.

Carlos Pires disse...

Dou aulas à 16 anos e vejo todos os dias as ideias de Nuno Crato serem confirmadas pela experiência. Todos os ideias observo também as ideias do "eduquês" ou da "Pedagogia Romântica", como lhe chama NC, serem refutadas pela experiência. Por isso...

Anónimo disse...

Carlos,
O trabalho do Nuno Crato tem sistematizado um conjunto de observações desorganizadas que fazemos dia a dia na nossa vida nas escolas. O que é interessante notar é que o discurso do Nuno praticamente é isolado e nunca esteve á discussão em matérias educativas. E é disso mesmo que ele se queixa: não de que o seu modelo seja o modelo da salvação educativa, mas que pura e simplesmente esteja arredado da discussão. não faz sentido. E há pequenos indicadores até nesta entrevista: se repararmos temos um conjunto enorme de obras traduzidas em ciências da educação ao mesmo tempo que assistimos a um quase deserto de tradução de obras que contraponham as teses do pensamento estabelecido. Do meu ponto de vista um dos problemas maiores da educação é que ela não está entregue aos professores, mas sim ao Ministério Centralizador. Por outro lado, por falta de hábitos de liberdade, a transferência de poderes para as escolas deve ser feito de forma gradual. Temos de trabalhar com o que está feito e bem feito. Temos muitas coisas boas no nosso sistema educativo. Não podemos é degradar a sua qualidade. A base está pronta, temos é de limar as arestas a curriculos, programas, exames, etc. Mas caramba, além de questões meramente profissionais, não vejo sindicatos nem quaisquer plataformas a trabaçhar neste sentido. Vejo sim, casos isolados de professores que são responsáveis e gostam de aperfeicoar o seu trabalho. E, segundo me parece, a qualidade do ensino acaba por andar a reboque destes profissionais isolados, que vão lendo bibliografia da sua área, planificando melhor as suas aulas, optando por melhores materiais, etc.. ainda por cima a avaliação que nos propuseram impor não contempla nada disto, pelo menos tendo como mote a formação de conhecimento e científica dos nossos estudantes.
abraço

Anónimo disse...

"Mas eu penso que um aluno que saiba ler um romancista, sabe ler tudo o resto."
Talvez seja por isso que conheço tantos professores de português que não conseguem perceber um manual de instruções. Se os conhecimentos de quem ensina são tão fracos, é-lhes conveniente um sistema de ensino em que "todos aprendam com todos".

Leonel Morgado disse...

Acho que é a primeira vez que consigo concordar em grande parte com o Nuno Crato. Isto porque a abordagem "anti-construtivismo" que tem seguido aparece aqui mais sensata: ir buscar o que interessa a cada abordagem, descartar o que não tem base de sustentação.
Por exemplo, o Kilpatrick é geralmente muito louvado, pelo seu método de projecto, pelos autores construtivistas.

Só no final é que se descamba... Os manuais de instruções que já aqui alguém se referiu são um texto inatingível para a maior parte dos profissionais das áreas humanísticas. Desde criança que tive de explicar como funcionavam videogravadores, depois na adolescência e idade adulta programas de computador, mas expliquei quase sempre coisas que estão escarrapachadas e claras... simplesmente, a escrita literária não dá para tudo. Mas dá para muita coisa, e provavelmente para mais do que ignorá-la.
Da mesma forma, esquecer a motivação é condenar todo um grupo de alunos à ignorância, porque simplesmente desistem. O grande dilema actual é que é difícil puxar por alguns alunos sem travar outros... e dar asas a uns é às vezes abandonar outros. Não há solução, senão lutar, tentar sempre melhor.

Anónimo disse...

Man,
não me cabe em tarefa justificar as afirmações do entrevistado, mas creio que o Man cai numa incompreensão muito comum em matéria de educação que consiste basicamente em acreditar que os conteúdos não desenvolvem competências. Então, passa-se por cima dos conteúdos e toca a abrir com competências. Ora, sem conteúdos, as competências soam a catequese imposta. Vou dar um pequeno exemplo do que aqui estou a dizer: o que se procura na disciplina de português, entre muitas outras coisas, é desenvolver nos estudantes competências de interpretação, leitura e argumentação. Claro que se insistirmos com o estudante nos textos literários com qualidade e consagrados, estamos ao mesmo tempo a oferecer as competências para que no futuro possa ler um qualquer folheto de supermercado, interpretando até a realidade que oculta, mas que existe. Como professor de filosofia no ensino secundário procuro oferecer as ferramenta que ajudam os estudantes a pensar por si próprios, para que não se transformem em tias que precisam de ver semanalmente o professor Marcelo para ter alguma coisa que dizer, já que mais não sabem fazer do que repetir acriticamente. Uma pessoa que repete acriticamente é uma pessoa incapaz de reconhecer o valor intrínseco inerente às coisas da vida e mais voltada para as invejas, miudezas e demais comportamentos infantis disfarçados de adultês. São estas competências que o saber, o conhecimento desenvolve. É uma utopia querer desenvolver estas competências sem ensinar os estudantes, desde pequenos, a calcular, ler, interpretar, pensar autonomamente, etc.. Se o estudante não está dotado do conhecimento mais avançado, é um macaco que enfarda com a catequese que o professor lhe atirar. E isto é que está errado no nosso ensino, esta aparente simplicidade que tudo mancha, que consiste em colocar competências onde deveriam estar conteúdos. E é talvez essa a razão que explica que numa sala de professores as conversas sobre os estudantes caiam facilmente sobre as taais competências, quando era mais engraçado que os professores estivessem a discutir as suas matérias, coisa que cada vez é mais rara entre docentes. sabe porquê? porque não é incentivada. Isto tem obviamente um custo e um preço e esta merda passa-se com a mentira de que os mais desfavorecidos não tem capacidade para aprender física, filosofia e matemática. Neste sentido o sistema de ensino é cada vez mais uma máquina de assassinar cérebros.

Anónimo disse...

"Com a devida vénia trnscrevemos o cerne da entrevista"

Continua o erro. Continua a asneira. "Trnscrevemos o cerne"?. "Devida vénia"?

Até uma criança de seis anos as topava.

Rolando - isto é mesmo o seu nome? Processe os seus pais-, um amigo porreiro.

Anónimo disse...

Caro Pedro,
Sobretudo não tenho medo daquilo que penso e nado bem na possibilidade do erro. O cerne da questão é este. Com a devida vénia!
Uma sugestão em troca da sua: porque não se propõe para revisor literário do Rerum Natura? Já percebi que reúne qualidades para tal tarefa.

Anónimo disse...

Amigo Rolando, não me percebeu, eu concordo com esta afirmação:
"Mas eu penso que um aluno que saiba ler um romancista, sabe ler tudo o resto."

O que quis dizer é que há muitos professores de português que não sabem interpretar um manual de instruções, quanto mais um texto literário. Esta é a triste realidade, apesar de não ser politicamente correcto.

Nuno Calisto disse...

Nuno Carto, lúcido e carregado de razão,como sempre.
O seu livro Eduquês ficará como um marco na história do ensino em Portugal. Porque a farsa tem os dias contados e infelizmente vai ser a economia que vai obrigar estes políticos a emendar a mão.

Anónimo disse...

Crato a Ministro.

Anónimo disse...

Quem da as culturas asiaticas como exemplo devia ir viver para uma colonia de formigas, obviamente o modelo asiatico é mau. Façam o mesmo inquérito nos paises asiaticos e vejam os resultados. Esses comentarios sao tipicos de quem se interessa mais em mostrar o que sabe do que em ensinar. Esse sim é o grande problema. A matematica é um exemplo claro. Que interesse tem a matematica para um estudante do secundario sem um contexto practico? Nenhum. Que quiser ir mais além basta ter uma média de classificaçoes perto da negativa e pode estudar matematica no ensino superior.

Anónimo disse...

«A nossa sociedade tem um défice de cultura científica bastante notório, e que aliás já foi medido - tem-no sido, pelo Eurobarómetro, por exemplo, através de inquéritos.»

Concordo. E, infelizmente, entendo que há um défice de tudo o que é cultura e não só.

«Colocar a cultura científica na ordem do dia é muito importante. Nos cartazes, na televisão, no teatro, no cinema, na rua, nos jornais.»

Pela minha experiência enquanto estudante, há muitas coisas na ciência que despertam o interesse das pessoas. Das áreas do saber a ciência não é das mais dificeis de colcoar na ordem do dia, porque tem alguns aspectos muito apelativos. Mas há um défice de vontade de o fazer.

«Temos jovens todos os dias sentados na escola durante 9, ou 12, ou mesmo 15 anos, jovens que lá estão supostamente a aprender coisas, mas que na verdade pouco sabem.»

Infelizmente é a realidade nua e crua. O ensino básico e secundário não desperta interesse na maioria dos jovens. As técnicas utilizadas para ensinar produzem poucos efeitos desejáveis.

Portugal tem péssimos resultados a Matemática, até poderia parecer que a culpa é dos alunos que não têm capacidades para aprender. Mas enquanto ex-aluna do básico sei que o problema não é apenas dos alunos.

A maioria dos professores de matemática que tive não se interessava pelas dificuldades dos alunos. Chegavam às aulas e leccionavam à sua maneira, não importando se haviam ou não alunos que não compreediam. Não manifestavam interesse pelas dificuldades de muitos alunos. Quando se perguntava pela utilidde prática das matérias respondiam que era muita e davam exemplos de aplicações, mas geralmente não explicavam como passar da teoria à prática, que no fundo era o que os alunos pretendiam saber. As matérias eram leccionaddas de forma parcelar, não havia enquadramento.

No fim lá passava a maioria dos alunos sem saber muito bem algumas matérias. Especialmente nas disciplinas de matemática, de física, de química, em alguns casos de português.

«Estamos a dizer que é preciso por um lado dirigir os alunos, e por outro estimulá-los, de forma a que por eles mesmos descubram coisas e participem – enquanto lhes ensinamos outras coisas.»

Isso era a ideia que eu gostaria de ter do ensino. Todavia, parece que o ensino português (básico e secundário) caminha noutro sentido. Ou seja, alunos a dirigir, tendo como estímulo a passagem de ano. As descobertas passam por arranjar trabalhos e textos (para copiar).

Até para pequenos trabalhos simples tenho visto pedidos de ajuda em fóruns online. Do género «alguém fez isto? se sim, envie-me o trabalho para eu tirar umas ideias».

«Na leitura também têm predominado uma série de coisas erradas. Primeira: a ideia de que para aprender a ler coisas do dia-a-dia, como sejam posologias de medicamentos, jornais ou manuais dos automóveis, é preciso ler posologias de medicamentos, jornais e manuais dos automóveis. E desaparece a literatura. Mas eu penso que um aluno que saiba ler um romancista, sabe ler tudo o resto.»

Exacto. Não se percebe porque é que complicam o que é simples.

«O romantismo tem ainda outra coisa: na leitura há três etapas fundamentais: a descodificação dos sinais (saber formar as palavras e entendê-las); a compreensão do conteúdo; e a compreensão aplicada, se quisermos, ou seja, sermos capazes de questionar o que lá está escrito, a interpretação. No nosso ensino, insiste-se na primeira e na última, e muitas vezes pede-se aos alunos que interpretem coisas que eles ainda não perceberam!»

Mais grave, várias vezes salta-se a etapa do meio. E não só muitos alunos não conseguem interpretar, como alunos que têm gosto pela leitura perdem o interesse pelas obras de leitura obrigatória.

«É muito mais interessante ler Literatura do que o regulamento do Big Brother, como apareceu num manual de português!»

Regulamento do Big Brother num manual de português? OMG! Para onde caminha o ensino?

Não sai do ensino secundário há muito tempo (há alguns anos apenas). Quando lá andava já achava que era tudo muito básico. Quando cheguei ao superior constatei que estava mal preparada para esse nível de ensino. Pela primeira vez dei-me conta de que não tinha bons métodos de estudo, também percebi que as capacidades de memorização estavam pouco desenvolvidas. E cada vez que leio sobre o ensino actual fico com a ideia de que a qualidade piorou desde então.

Anónimo disse...

Professor, desculpe ser demasiado ácido no meu comentário, que aliás não é dirigido particularmente a si mas a uma certa confusão que se se tem generalizado até mentes superiores. Mas, como pessoas notáveis nas suas áreas, como Desidério Murcho, você Nuno Crato, cujo trabalho de divulgação científica veio colmatar uma grave lacuna em língua portuguesa, e Carlos Fiolhais, cujo comentário de um livro sobre o "eduquês" motivou inicialmente esta minha reflexão sobre o tema, senti-me na necessidade de lhe enviar este comentário.
De como tanto os defensores quanto os detractores do eduquês laboram num erro: lutam, como Dom Quixote, contra uma coisa que não existe. Mas como é necessário um objecto contra o qual o seu conceito se deve medir e a sua polémica se justificar, é preciso construí-lo, mesmo que não exista.

Carlos Fiolhais, no "blogue" De Rerum Natura - desenvolvendo um raciocínio sobre as "novas" correntes da eudcação semelhante ao do cientista Nuno Crato e ao do filósofo Desidério Murcho -, escreve um comentário encomiástico ao livro de E. D. Hirsch Jr., Cultural Literacy, citando um glossário, apresentado por este, dos temas maiores da dita corrente pedagógica contemporânea - aliás dividida em doutrinas que abraçam princípios muitas vezes opostos, como é o caso da pedagogia por objectivos fundada num comportamentalismo moderado (ironicamente mais próximo dos críticos do "eduquês"), e o condutismo ou construtivismo, pedagogia activa orientada - apesar dos seus limites teóricos - para o desenvolvimento integrado da personalidade, no seu carácter, sentimentos, pensamento crítico e conhecimentos, que só aparentam serem palavra vagas e mágicas porque não se prestam, como muitas vezes o positivismo exige, a meras definições categoriais mas designam aspectos dum processo à vez analítico e sintético - e sarcasticamente intitulada no nosso pequeno canto de "eduquês" (não sendo um conceito, não se refere objectivamente a nada).

Eis o glossário que, tal como foi exposto no comentário de Carlos Fiolhais, aparece descontextualizado das suas origens históricas e filosóficas, da sistemática teórica e da prática que lhe dá sentido:
«1.Concepção instrumental da educação:

"aprender a aprender",

"aptidão para o pensamento crítico",

"aptidões metacognitivas",

"aprendizagem permanente".
2.Desenvolvimentalismo romântico:

"aprendizagem ao ritmo dos alunos",

"escola centrada na criança",

"diferenças individuais dos alunos",

"estilos individuais de aprendizagem",

"inteligências múltiplas",

"ensinar a criança e não a matéria".
3.Pedagogia naturalista:

"construtivismo",

"aprendizagem cooperativa",

"aprendizagem por descoberta",

"aprendizagem holística",

"método de projecto",

"aprendizagem temática".
4.Antipatia ao ensino de conteúdos:

"os factos não contam tanto como a compreensão",

"os factos ficam desactualizados",

"menos é mais",

"aprendizagem para a compreensão".»

Carlos Fiolhais (de resto um cientista que respeito com toda a minha humildade dentro da área científica que domina como poucos, a física) sustenta (diga-nos professor Nuno Crato se também subscreve esta ideia), por exemplo - sendo esta uma tese central do chamado "eduquês" -, que "aprender a aprender" «é, em geral, apenas um jogo de palavras que inebria quem as profere. [...] Nesta concepção educativa, interessa mais o instrumento - a cana de pesca - do que propriamente o peixe. Quem diz isso é capaz de ficar horas perdidas sem pescar nada, não se importando nada com isso. De resto, que diz isso parte de um erro: que se pode separar o conhecimento factual da atitude para o adquirir. Como se poderão transmitir atitudes em abstracto sem objectos que as exijam?»

Totalmente de acordo com a última frase. Mas não estará Carlos Fiolhais a interpretar a expressão "aprender a aprender" distorcendo-lhe o sentido através da sua descontextualização das teorias e das práticas de ensino-aprendizagem que a tomam como lema, claro que não por má-fé mas por desconhecimento destas? Não estará, pelo menos, a ignorar a seriedade dos problemas que levanta ocultada pelos documentos e pelas práticas dos que, pelo contrário, a usam seja de maneira preguiçosa seja precisamente por má-fé e oportunismo político, estatístico e populista, sendo que este sim é um dos obstáculos principais - junto com a concepção pragmática, instrumental, operativa do saber - à educação que devemos ter?

Senão vejamos. A "escola nova", na sua recepção mais primária mas com má-fé nas altas instâncias do poder educativo, de origem romântica mas instrumentalizada nas últimas décadas para a formação de jovens de carácter cegamente competitivo e com uma atitude utilitária para com o conhecimento e a realidade humana e natural - ou seja, para a educação dos jovens no empreendedorismo estreito focado na acumulação de capital, na concorrência brutal entre empresas sem misericórdia para com os trabalhadores, portanto também associado à criatividade que isso impõe (quem não quer ter um telemóvel "touch screen", que dá mais sensualidade à comunicação e sentido à vida?), assim como à cobiça, à vaidade, ao consumo desenfreado necessário à manutenção deste sistema económico -, a "escola nova", dizia, é ideologicamente pedocêntrica (os direitos do homem estendem-se aos da criança simultaneamente à medida que se vai cumprindo a ética formal burguesa, universalizante 'a priori', e na medida em que se vai tornando um ser de consumo imprescindível para a acumulação capitalista), construindo-se a partir da noção de aprendizagem, subordinando a mundividência dos adultos à estrutura cognitiva, expectativas e motivações dos alunos, sem compreender - ou fazendo crer que o desconhece - que a estrutura cognitiva não se desenvolve por geração espontânea nem que as motivações das crianças e adolescentes são inatas mas constituem condutas mobilizadas pelos interesses do mundo adulto que as rodeia. É que até os jogos infantis foram de invenção adulta.
Os traços mais característicos da chamada "escola nova" é - abstraindo de tudo o que distingue as diversas escolas "novas" -: - horror ao método expositivo, considerado como violência mental, pois pretende impor o universo cognitivo e afectivo do professor ao universo incomensurável (melhor dizendo, aberto às sempre novas solicitações concorrenciais da sociedade civil) do aluno; - a escola deve ter a missão de formar personalidades (diga-se, carácteres competitivamente agressivos, embora civicamente respeitadores, porque é do interesse de todos que a sociedade pelo menos viva numa harmonia formal, de resto essencial) e não exclusivamente mentes.
A "escola nova" basear-se-á pois, num modelo de não-directividade, valorizando a eficácia, o êxito, a realização, numa perspectiva de criatividade associada ao lucro económico empresarial, ao sucesso militar, ao poder político, às artes, domesticadas pela sua institucionalização como objectos de prestígio, conduzindo a uma sociedade de estatutos sociais discriminados na forma duma méritocracia, que fez grande parte do sucesso da nação norte-americana, e a miséria de muitas outras.
Porém, o próprio modelo tradicional, directivo, magistral, sob a capa da racionalidade, já visava sobretudo objectivos pragmáticos, promovendo também a ideologia do sucesso.
Só que a escola magistral já não se aplica ao nosso tempo (parece indicá-lo o processo de Bolonha), para o qual não interessa saber muito - o porquê, o fundamento, o enquadramento sintético - mas saber onde ir buscá-lo e saber operacionalizá-lo especializadamente nos objectivos reprodutivo e criativo-concorrenciais - o objectivo competitivo e o como se pode alcançá-lo.
Muito mais se poderia dizer sobre a nova "escola nova", tão apreciada pelos actuais poderes políticos e económicos. Não podendo desenvolver igualmente todos os tópicos correlatos e associados, procurarei esclarecer então o sentido histórico-filosófico e o verdadeiro significado da expressão "aprender a aprender", injustamente maltratada quer pelos críticos quer pelos adeptos institucionais do "eduquês".
Ela tem raízes inimaginavelmente antigas, socráticas e isocráticas, mas podemos começar com o grande filósofo alemão Immanuel Kant e com a sua "Informação acerca da orientação de cursos no semestre de Inverno de 1765-66", que incidiu sobre dois tópicos: reflexão sobre a pedagogia em geral e reflexão sobre a didáctica da Filosofia.
O seu texto, como não podia deixar de ser, representa uma revolução copernicana na pedagogia, fornecendo as bases filosóficas para uma escola nova, que nada tem, como veremos, da caricatura a que actualmente foi reduzida: o ensino-aprendizagem não deve girar em torno de saberes já constituídos e dogmáticos mas são os saberes que devem girar à volta do homem, como produtos das suas faculdades e portanto, no reconhecimento tanto do carácter determinante da actividade cognoscitiva do indivíduo como da ambição sistemática, necessária embora muitas vezes mal fundada, da razão humana, saberes susceptíveis de um trabalho de revisão crítica pelo esforço de assimilação prática, ética, estética e intelectual da experiência e da experimentação a que todo o ser humano pode sujeitar as coisas a fim de torná-las seus objectos. Assim, saber fazer uso do entendimento é para Kant, como escreveu em "O que são as Luzes", ousá-lo contra todas as formas de tirania intelectual e moral, seja ela mundana seja dita transcendente.
A pedagogia de Kant não pode pois ser ignorada, por mais defeitos que presentemente se lhe possa apontar.
No que respeita a uma teoria geral da educação, Kant inscreve-se no contexto da pedagogia do século XVIII. É influenciado por Rousseau e sobretudo por Basedow, que introduz o jogo, o trabalho manual e a educação física no currículo escolar. Kant denuncia a posição paradigmática da pedagogia do século XVIII, que é a da ideia de que o estudo é necessariamente um esforço violento imposto, centrado no ensino ignorando as particularidades do processo de desenvolvimento infantil.
Todavia Kant também critica a Basedow um excessivo sensorialismo e emotivismo, assim como a demasiada importância conferida à ludicidade. O projecto kantiano valoriza a disciplina e o respeito pela ordem escolar, na medida em que ela consiste num instrumento de orientação dos alunos para o desenvolvimento sistemático, metódico, das suas aptidões e conhecimentos, considerando igualmente que as recompensas (behavioristas, diríamos agora), supostamente motivos básicos da acção numa perspectiva hedonista, tendem a mercantilizar a educação, no seu próprio seio, pervertendo o seu sentido e valor.
Na verdade, uma vez que a educação consiste numa transformação não-natural da criança e do adolescente, exigindo a mobilização da noção de dever, qualquer progresso - mesmo tendo que ser produto da actividade construtiva do aluno - obrigará a um esforço garantido pela disciplina e pelo respeito perante as regras pedagógicas instituídas.
Aliás, disciplina, esforço e espontaneidade na aprendizagem não são termos contraditórios, antes pelo contrário. Para Kant, a educação é o meio pelo qual o homem adquire a sua humanidade e, posto que ela sirva para o homem adquirir todas as suas virtualidades, deve torná-las actuais, realizadas. Ora, a realização de qualquer mudança obriga a um esforço, para o qual a ausência de inclinação natural, espontânea, para o conhecimento - ao invés do afirmado por Aristóteles -, se torna necessária a disciplina.
Kant preconiza um esquema progressivo na formação integral do homem, esquema que segue a génese do próprio conhecimento (a pedagogia não é mais do que a doutrina dos processos práticos de aquisição do conhecimento junta a uma ética e a um projecto), com as seguintes etapas: intuição, conceitos do entendimento, integração dos conceitos empíricos nos seus fundamentos, constituição da ciência mediante o encadeamento bem fundamentado dos juízos.
Há portanto, no projecto educativo da escola nova de Kant, um plano prévio e estratégico de estudos que não se coaduna 'a priori' de maneira harmoniosa com as inclinações espontâneas dos alunos e com os seus interesses imediatos, dispersos e incoerentes.
A alteração da ordem dos estratos do conhecimento, assim como a prevalência do ludismo, privilegiando a subjectividade na relação com o objecto de aprendizagem, no processo pedagógico leva a um pseudo-saber, porque o que se aprenderá não poderá estar fundamentado numa totalidade cognoscitiva. Em suma, aprender-se-ão, no máximo, juízos e conceitos que não estão ligados a uma totalidade integradora, perdendo assim a sua base de significação.
Ao passar ao segundo tópico na sua "Informação de orientação de cursos", Kant esclarece finalmente o que entende por aquilo que actualmente se designa por "aprender a aprender". Nada mais do que "aprender a pensar". E o comprazimento espasmódico com o aparente paradoxo dissipa-se.
O que se aplica à Filosofia aplica-se a qualquer disciplina acerca dum saber arquitectonicamente constituído.
Toda a disciplina escolar deste tipo, encarada no seu conteúdo como sistemática de um saber prévio, é pois um sistema de conceitos elaborados dedutivamente. Mas qualquer ciência - permitimo-nos generalizar o que Kant diz da Filosofia - tem que ser tomada, no âmbito da actividade escolar, ou de aprendizagem, como matéria para nela se exercer o pensar autónomo.
Isto quer dizer também que, por exemplo, sem Filosofia escolar, sem ensino sistemático da Filosofia, não pode haver atitude filosófica.
Com isto rebate-se, confirmando na sua verdade, a objecção de Carlos Fiolhais a respeito da caricatura real da "nova escola", de que não se podem transmitir atitudes, ou disposições e métodos, em abstracto sem objectos que as exijam. A organização mental, a problematização, a crítica implicam conhecimentos seguros sobre os quais se possa raciocinar; mas, inversa e simultaneamente, o desenvolvimento do raciocínio é uma condição necessária para a aquisição de novos conhecimentos. As operações interiorizadas pela experiência dos objectos constituem a base formal da determinações de novos factos. Parafraseando Kant, juízos sem fenómenos são vazios; fenómenos sem juízos são cegos.
Mas Kant diz mais: não são apenas os objectos que exigem as atitudes do sujeito perante eles - caso em que recairíamos numa passividade essencial do sujeito a respeito do objecto, como sucede no empirismo e no positivismo -: é o sujeito, para usar termos piagetianos, na sua actividade originariamente vital, e simultaneamente social, que assimila e acomoda os objectos nas suas operações cognitivas.
Quer dizer, se há conhecimentos há atitude. Mas para haver atitude, é preciso "aprender a aprender" ou a pensar, quer dizer a determinar factos na experiência e a ter um distanciamento crítico perante os procedimentos mentais e as crenças.
Não se aprende a aprender a aprendizagem - o que parece ser a interpretação que muitos pedagogos actuais dão do mote "aprender a aprender" -, nem mesmo os pedagogos aprendem a aprender qualquer coisa ou a ensinar sem matéria para o fazer. Se "aprender a aprender" tem sentido é na medida em que, pelo contrário, não se trata duma actividade no vazio mas numa experiência contínua que, pouco a pouco, por generalização e reflexão, destaca do complexo total de cada uma das aprendizagens singulares os procedimentos formais de conhecimento, de análise, síntese, indução simples ou probabilísta, dedução, analogia, etc..
"Aprender a aprender" é, em suma, o processo progressivamente generalizante e reflexivo de conhecimento de matérias visadas pelo sujeito, portanto ao mesmo tempo orientado para a abstracção e generalização do método de aprendizagem dessas mesmas matérias.
"Aprender a aprender" é adquirir ou, como se queira, tomar consciência de métodos, na prática duma aprendizagem concreta. E o método, criticamente reflectido, é a conduta do sujeito livre perante o mundo que o rodeia.
Assim, ao mesmo tempo que descobre o valor alimentar do peixe, apercebe-se da dificuldade de o apanhar com mãos nuas e acaba por ter de construir uma ferramenta (a cana) e um método (a técnica de pesca à linha). Está, pois, justificado o provébio chinês: "Não lhe dês o peixe mas ensina-o a pescar".
Escreve Kant a respeito da tarefa do aluno: «Em poucas palavras, ele não deve aprender pensamentos mas aprender a pensar; não se deve levá-lo mas guiá-lo, se se pretende que no futuro ele seja capaz de caminhar por si mesmo.»
«Ousa pensar por ti mesmo.», escreveu Kant em "O que são as Luzes".

NOVA ATLÂNTIDA

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