segunda-feira, 15 de dezembro de 2008

A educação nacional e a avaliação dos professores


Nova crónica sobre educação de Rui Baptista:


Segundo Roland Barthes, “a existência de uma erótica do novo, faz com que o antigo seja sempre suspeito”. Mas, com o saudosismo que a idade me permite, não posso deixar de evocar os meus tempos de aluno do então chamado ensino primário em que eram exigentemente avaliados os conhecimentos da leitura, da escrita e da resolução de problemas matemáticos, com exames de passagem da 2.ª para a 3.ª classe e exame final da 4.ª classe. Vivia-se também em tempo de grande prestígio para o exercício da docência no ensino liceal (que os ventos da mudança “alcunharam” de secundário) que mereceu de Clara Pinto Correia uma bela crónica, intitulada “O render dos heróis”, de que transcrevo um excerto:


“A barbárie não anda longe. Nunca andou. É contra o seu fundo de trevas que se desenha o brilho da civilização. É nesse mesmo fundo que, de tempos a tempos, o brilho se dissolve e a escuridão total desce sobre a floresta. É cíclico. Já aconteceu antes. Mais que uma vez. Não temos nenhuma razão, pelo contrário, para pensar que não volte a acontecer. Para evitar que assim seja temos nos professores do liceu a mais importante das nossas armas. Devíamos beijar-lhes as fímbrias do manto”.


Em contrapartida, hoje, com o laxismo de deixar passar toda a gente, brada aos céus a falta de cultura geral (e específica) de alguns dos alunos do ensino secundário e mesmo do ensino universitário. Apenas um pequeno e elucidativo exemplo: o “Jornal Nacional” da TVI (29/01/2003), ao entrevistar alunos da Faculdade de Letras de Lisboa perguntou a um deles o nome do autor de “Os Maias”. Por mais incrível que pareça, foi atribuída a autoria a Egas Moniz deixando, dessas forma, pairar a dúvida se se estaria a referir a Egas Moniz, fidalgo do século XII, exemplo de honradez, ou a Egas Moniz Prémio Nobel da Medicina de1949. Trazia ele atrás de si doze anos de escolaridade anterior porque nessa altura só existiam as velhas oportunidades!


Sendo alguns destes alunos futuros professores do actual ensino secundário ou mesmo universitário, não será a altura de diagnosticar, avaliar e procurar soluções para o estado calamitoso do nosso sistema de ensino que faz com que a ignorância dele se tenha apossado transformando-o numa triste e desalentadora chaga nacional? Até que ponto poderemos continuar a fazer ouvidos de mercador às palavras de António José Saraiva, uma referência incontornável da cultura portuguesa, quando nos adverte:”Não se deve confundir a vida política com um estado de agitação convulsiva em que não há regras e em que cada aventureiro (…) manipulando manifestações de rua, impõe a sua lei, como aconteceu nos meses seguintes ao 25 de Abril. A regra do jogo é indispensável a qualquer sociedade organizada”? (Crónicas de António José Saraiva, Quidinovi, 2004, p.671).


Passados anos (esta crónica é do ano de 1983), onze sindicatos em representação dos professores continuam a manifestar-se contra o sistema de avaliação proposto pelo Ministério da Educação que enquadra num mesmo modelo avaliativo docentes do ensino infantil ao ensino secundário como se a exigência científica e pedagógica dessa docência pudesse assumir a forma de “prêt-à-porter” em repetição de um espartilho representado anos antes por um estatuto de carreira docente única que não encontra paralelo em outros países europeus. E o mais curioso disto é que nesse aspecto nenhuma discordância separa a tutela dos tutelados. Ou parece separar.

Embora, como reconheceu Jeff Busch, referindo-se a uma reforma educativa no estado da Florida, nos Estados Unidos, de que era governador, “quem não mede não se preocupa com as coisas”, a crise actual portuguesa é bem mais ampla do que a questão da avaliação. Exige uma profunda e radical política que retire Portugal do atoleiro que lhe tolhe o passo na senda dos melhores resultados escolares do resto da União Europeia. As notícias sobre o sistema de avaliação dos professores, que têm enchido páginas e páginas dos jornais, ocupado horas e horas de tempo de antena radiofónica e passado até à náusea nos ecrãs de televisão, fazem correr o risco do acessório se transformar em principal.


Para a isso obstar, a reforma do sistema educativo do ensino infantil ao universitário merece ser encarada na sua globalidade e não como um remendo em esburacada manta de retalhos. Mas haverá coragem e vontade política em promulgar a necessária e urgente legislação sem ser sob pressão sindical ou de lobbies de outra natureza? Caso contrário, é melhor deixar tudo como está porque, nas palavras pessimistas (ou realistas?) de Albert O. Hirschman, “sempre que se propõe uma reforma, é verdade, primeiro, a reforma não vai alterar em nada o que já existe; segundo, a reforma vai produzir efeitos exactamente contrários aos que pretende ter; terceiro, a reforma vai prejudicar o que havia de positivo na reforma anterior”.

3 comentários:

Anónimo disse...

Fazer uma coisa destas esquecendo que o número de alunos foi muitas vezes multiplicado.

“quem não mede não se preocupa com as coisas”. ESta frase cria um absurdo. E se me preocupar com a medição (que é uma coisa, não é), tenho que medir a medição - ad infinitum.

José Simões

Manuel Baptista disse...

Acho que a frase final, de Hirshman, é profunda, embora seja uma ironia também.
Explico-me:
Em Portugal, desde o século XIX, cada novo governo, até o presente, traz consigo a sua reforma da educação. Justamente, Portugal encontrou-se sempre na retaguarda da instrução, com as maiores taxas de analfabetismo, que aliás continuam, pois as pessoas podem ser «analfabetas funcionais», a pior variedade; elas não se reconhecem como analfabetas e portanto são impossíveis de educar.

A educação não deve ser amestramento, deve ser libertação, emancipação, autonomia.

A educação está confinada à escola, mas a escola (do 1º ciclo à universidade) estagnou, n ão evoluiu ao ritmo da sociedade e dos saberes.

A melhor educação seria a que estivesse disseminada por n lugares, que estivesse realmente ao alcance de todos, que pudesse ser apropriada em qualquer momento que na vida de cada um desse jeito.

Eu imagino que uma escola para acompanhar a nossa época, deveria ser um pouco como um super-mercado, onde um cliente entra e serve-se dos produtos arrumados nas prateleiras.
A escola que estivesse à altura do nosso tempo seria de auto-aprendizagem, assistida por tutoriais diversos, eventualmente complementada por estágios práticos de aperfeiçoamento.

Mas isso não seria uma reforma da escola; seria a revolução verdadeira: seria a destruição radical da escola que existe e a edificação de uma sociedade, onde aprender fosse tão natural como respirar.

Rui Baptista disse...

Caros comentadores: Obrigado pelo vosso contributo trazido ao meu post.

J.Simões: Bem sei que medir as coisas nem sempre dá o valor exacto das coisas. Esse o perigo de certos dados estatísticos. Que me importa saber que o analfabetismo em Portugal diminuiu se esse resultado se cifrar num maior número de analfabetos diplomados?

Aliás, reconheceu-o, de forma lapidar,o falecido Francisco de Sousa Tavares ao escrever (cito de memória): Dantes Portugal era um país de analfabetos, hoje é um país de burros diplomados!

In memorian:

Concordo consigo: a frase de Hirshman é irónica. Mas não é também verdade, como diziam os latinos, que a rir se castigam os costumes? Mas a ironia, não lhe retira a veracidade de reformas sobre reformas que nada reformam.

Na verdade, é espantoso o estado de ignorância manifestado pelos discentes (e não só)portugueses : a excepções servem apenas para confirmar a regra.

Dando desconto à "boutade" de que, como li algures,o “autodidacta é um ignorante por conta própria” (porque existem verdadeiros autodidactas, como por exemplo os romancistas Ferreira de Castro e José Saramago), preocupante é haver neste país ignorantes com diplomas académicos, obtidos seja através de velhas ou novas oportunidades.

A proposta que apresenta de um novo ensino "libertado, emancipado,autónomo" apenas peca por exigir uma revolução radical num país em que uma simples mudança de paradigma na avaliação docente desencadeia ondas de protesto sindical.

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