domingo, 22 de junho de 2008

O valor do Montagnana de Suggia


"A melhor maneira de o conservar é tocá-lo (…). É muito especial pelo valor que tem e pela antiguidade, por ter pertencido a Guilhermina Suggia, possivelmente a primeira grande figura da música erudita portuguesa com grande projecção no mundo (…). Tem sido uma semana bastante esquisita, porque é uma oportunidade única de tocar um instrumento como este."

Bruno Borralhinho

“Eu, Guilhermina Augusta Xavier de Medim Suggia Carteado Mena, viúva, violoncelista, residente na Rua da Alegria, número seiscentos e sessenta e cinco, desta cidade do Porto, encontrando-me no uso pleno das minhas faculdades e livre de qualquer coacção, faço por este meio e meu testamento e disposições de última vontade, para que se cumpram e respeitem tais como passo e enunciar:
- O meu violoncelo Stradivarius juntamente com dois arcos, um Tourte e outro Voirin, que se encontram na posse da Embaixada Inglesa em Lisboa, será enviado pelo nosso Embaixador à casa Hills de Londres, a fim de ser por ela adquirido ou vendido pelo melhor preço que se obtenha e o seu produto entregue à Royal Academy of Music, que o aplicará, segundo o melhor critério, por forma que o rendimento daí obtido se destine à criação de um prémio denominado Guilhermina Suggia, a atribuir, anualmente, ao melhor aluno de violoncelo.
- Possuo outro violoncelo, Montagnana, que igualmente será vendido pelo melhor preço, quantia essa que lego ao Conservatório de Música do Porto – através da Câmara Municipal do Porto, se o dito Conservatório continuar a pertencer-lhe, ou do Estado, se porventura ele passar a ser nacional – a fim de, com o rendimento deste legado, se instituir, também, um prémio designado Guilhermina Suggia, a atribuir, em cada ano, ao melhor aluno de violoncelo do referido Conservatório (…).
Lego, ainda, ao mesmo Conservatório, a minha biblioteca musical – material de orquestra e literatura de violoncelo -, objectos esses a que será dada instalação condigna, para que, dessa forma, o culto, que eu toda a minha vida dediquei à arte musical, perdure e sirva de incentivo a todos – Mestres e Discípulos – que à Arte se dedicam.
- O meu violoncelo Lockey Hill lego-o ao Conservatório Nacional de Lisboa, como homenagem a meu pai, que foi aluno desse Conservatório (…).

Neste extracto do testamento da grande violoncelista Guilhermina Suggia (1885-1950), percebe-se claramente a preocupação em deixar uma herança a Inglaterra e Portugal – segundo dizia, as suas duas Pátrias – que viesse a constituir um incentivo ao estudo da música e à interpretação musical.

Ao que se sabe, Inglaterra aproveitou bem e de imediato a sua quota da herança, criando quase de imediato uma bolsa de estudo que já foi atribuída pela Royal Academy of Music a dezenas de jovens violoncelistas; Portugal demorou mais a compreender a importância e extensão do legado. Assim, a preciosidade, com mais de três séculos, que é o Montagnana, um dos violoncelos preferidos de Suggia, que a acompanhou pelo mundo fora, esteve até 2004 guardada e quase esquecida a embolorecer na cave da Câmara Municipal do Porto e, depois, num cofre-forte do Museu Soares dos Reis. A autarquia deixou-o sair em 2005 para ser exposto no Museu Romântico. Nesse ano foi tocado em vários concertos no Norte, por José Augusto Pereira de Sousa, Prémio Guilhermina Suggia de 1986, que também gravou o seu som em CD.

Finalmente, neste mês de Junho, pela primeira vez depois da morte de Suggia, numa co-organização Antena 2 e Centro Cultural de Belém, voltou à capital, para ser se tornar o centro das atenções em dois recitais da integral das suites para violoncelo solo de J. S. Bach, que, ao que se diz, ela interpretava magistralmente. O responsável pela iniciativa foi Bruno Borralhinho, que é membro da orquestra alemã Dresdner Philharmonie e do agrupamento Ensemble Mediterrain.

Este acontecimento, bastante noticiado, tem uma particularidade que passou despercebida e que aqui destaco por entender que constitui o cerne da própria Educação: o jovem Borralhinho pediu à Câmara do Porto autorização para usar o violoncelo de Suggia justificando que “a melhor maneira de o conservar é tocá-lo”. É verdade isto que ele disse: o conhecimento seja em que área for – artística, científica, filosófica… – é um bem muito frágil, mais frágil talvez do que a matéria de que o Montagnana é feito. A sua preservação e ampliação depende do valor que lhe atribuímos, sendo que essa atribuição precisa de ser ensinada e aprendida. Desta maneira, transmitir, actualizar e recriar o conhecimento é uma tarefa inacabada, que tem de ser constantemente retomada; de outro modo extingue-se.

Mais do que os três milhões de euros em que está avaliado, o violoncelo de excelente fabrico italiano, tem a sua valia no que representa para as pessoas que apreciam música e, em última instância, para o conhecimento. São essas pessoas que, como Bruno Borralhinho, têm responsabilidade de manter o conhecimento à luz do dia.

Imagens:
- Portrait of Madame Suggia, retrato a óleo datado de 1923, da autoria de August John, da Tate Gallery, em Londres in http://www.suggia.weblog.com.pt
- Fotografia de Nuno Borralhinho in http://www.suggia.weblog.com.pt

Documentos consultados:

- http://sol.sapo.pt/blogs/luardeagosto/archive/2008/06/08/Suggia_2E002E002E00_-a-violoncelista_2100_.aspx
- http://www.suggia.weblog.com.pt

3 comentários:

Freire de Andrade disse...

Abençoado blog que nos dá a conhecer esta deliciosa notícia. Só é pena que as nossas TVs e os nossos jornais não tenham tempo nem espaço para estas insignificâncias, já que os assuntos importantes para o futuro da humanidade, como seja o futebol, lhos toma quase por inteiro.

P Amorim disse...

Devem ter sido concertos a menos que o violoncelo estivesse a precisar de conserto de tão estragado que estava.

Pedro disse...

Parabéns para um grande Covilhanense!!!

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