segunda-feira, 30 de junho de 2008

Ideologia, lógica e discussão pública de ideias


Na discussão pública argumenta-se por vezes de um modo enganador. É o tipo de coisa que acontece na seguinte situação: uma pessoa defende uma ideia X. Como é natural e saudável, há pessoas que discordam de X. Mas quem discorda de X argumenta por vezes procurando mostrar que tal ideia pertence a um “ismo” detestado: liberalismo, comunismo, socialismo, capitalismo, etc.

Já me vi muitas vezes nessa situação. Não sendo um neoliberal (sou de esquerda, mas não me reconheço nas tolices da esquerda nacional), algumas das ideias que defendo são por vezes sumariamente executadas por serem aparentemente neoliberais. Outras vezes, as minhas ideias são sumariamente executadas precisamente por não serem neoliberais, o que pelo menos ajuda a equilibrar as coisas e dá para fazer algum humor. Mas estes equívocos escondem uma concepção profundamente errada da discussão pública.

A discussão pública de ideias é o melhor método que temos para testar a plausibilidade das nossas ideias. Não somos omniscientes — todos sabemos disso. Mas, como argumenta John Stuart Mill no maravilhoso Da Liberdade (Edições 70) (que não é um manifesto neoliberal, mas uma obra de esquerda — basta ler o que ele defende sobre o ensino dos pobres), apesar de toda a gente reconhecer teoricamente que não é omnisciente, a maior parte das pessoas age como se o fosse. Assumir que realmente não somos omniscientes leva-nos a considerar isto: O que podemos fazer para limitar os nossos erros? E a resposta, como sublinha Mill, é esta: a discussão pública. E esta é uma das bases da sua defesa da liberdade de expressão (que como é evidente está longe de estar interiorizada junto de muitos intelectuais de esquerda, como é o caso de Maria Teresa Horta, que não compreende que o preço a pagar pela liberdade de expressão é a chatice de alguém desatar a gozar connosco em público). Mas que noção de discussão pública pode desempenhar tal papel? É aqui que começa o problema.

Quem não compreende que a discussão pública é uma forma de testar ideias concebe-a como uma mera “contagem de armas” e como uma maneira retórica de fazer as pessoas aceitar as nossas convicções preferidas — e não como um convite a que todos analisem cuidadosamente tais convicções. Assim, cola-se o rótulo de um qualquer “Xismo” a uma ideia de que se discorda simplesmente para dizer à nossa manada: dado que nós somos anti-Xismo, devemos rejeitar esta ideia.

Esta atitude enfrenta dois problemas lógicos.

O primeiro é pressupor que há outra maneira qualquer de saber que o Xismo em causa é falso que não o mesmíssimo procedimento de discutir ideias publicamente.

O segundo é não se dar conta de que é muito mais difícil saber se o Xismo é falso do que saber se a ideia particular em causa é falsa, se a única razão que tivermos para pensar que o Xismo em causa é falso é o facto de o “ismo” que nós mesmos favorecemos se opor ao Xismo em causa. Pondo as coisas em pratos limpos: é muito mais fácil alguém argumentar directamente contra a ideia de que nenhuma escola deveria ser pública, por exemplo, do que atacar essa ideia dizendo apenas que é uma ideia neoliberal. Na verdade, desconfio que esta manobra só ocorre precisamente quando uma pessoa não tem qualquer outro argumento minimamente plausível contra a ideia em causa.

Em conclusão, se queremos uma discussão pública saudável temos de parar de a transformar em contagem de armas e retórica vácua. Temos de argumentar cuidadosamente quanto a cada ideia em causa, analisando-a, dissecando as suas vantagens e desvantagens previsíveis, tendo em conta os argumentos contra a nossa própria posição. Se não o fizermos, a discussão pública não contribui para a vida democrática — pelo contrário, tende a desgastá-la, e é talvez por isso mesmo que em Portugal as pessoas se cansam rapidamente da democracia e tendem a acolher de braços abertos qualquer ditadura que prometa soluções mágicas sem o incómodo da discussão pública de ideias.

A discussão pública de ideias não pode transformar-se na mera afirmação de ideologias. A ideologia é uma forma automática de fingir que se está a pensar, quando na verdade se está apenas a aplicar sem pensar receitas velhas a problemas novos. Não há qualquer razão para pensar que um conjunto de ideias gerais e muitas vezes velhas tem uma aplicação infalível na solução dos nossos problemas actuais. É preciso olhar para a realidade com olhos de ver, e ainda que procuremos inspiração na nossa ideologia favorita, temos sempre de nos perguntar se neste caso particular a aplicação da nossa ideologia favorita não terá consequências que nós mesmos não desejamos.

12 comentários:

Manuela Barros Almeida disse...

Como é que argumentamos com alguém que, numa discussão, seja sobre qual assunto for, justifica o que diz dizendo apenas: "É a minha opinião! É a minha maneira de ver as coisas e PRONTO."?

Jorge Oliveira disse...

É habilidoso, o Desidério Murcho. Apresenta-se como uma pessoa de esquerda, mas avisa logo que não se reconhece nas tolices da esquerda nacional.

A chamada jogada “dois em um”. Demarca-se dos canhotos nacionais (mais) tolos, mas não descarta a oportunidade de nos informar de que a opinião dele está num patamar mais elevado.

Sim, porque depois de um século de marketing, com injecções habilidosamente aplicadas atrás da orelha (até disfarçavam fazendo graça com o assunto) que levaram as pessoas a crer que "ser de esquerda" é ser bom e "ser de direita" é ser mau, que melhor arma se pode utilizar num debate, quando se tenciona carimbar desde logo uma posição vencedora?

Caso não sejamos canhotos, como é que se argumenta com uma pessoa que diz que é "de esquerda", sem ficar logo com os joelhos a tremer?

Não admira que os nossos debates televisivos estejam cheios de personalidades que "acusam" o interlocutor de ser de "direita". Eu não quero ofender ninguém com a comparação mas, por exemplo, Mário Soares, o filho e outros que lhe são próximos, não hesitam em lançar o alerta : “vejam, vejam, ele é de direita !” …

Desidério Murcho disse...

Manuela, a melhor maneira é desistir de tentar persuadir essa pessoa e dizer também você: "É a minha opinião que não tens razão! E pronto!" :-) Verá que resulta...

Jorge, sou de esquerda porque 1) não aceito a tradição e a autoridade como critérios últimos, 2) considero que devemos tentar eliminar a pobreza e 3) considero que as pessoas não têm capacidades e talentos em função do berço em que nasceram. Não me parece que ser de direita seja um anátema, e muitas pessoas que admiro são de direita. Mas considero as ideias da direita indefensáveis, porque são pouco mais do que a tentativa de conservar privilégios injustificáveis. Mas o meu post não é sobre a esquerda/direita, raios!

de.puta.madre disse...

Ai, ai, Desidério ... Só que não acontece assim ... espreita o Origem das espécies no post "Pessoal" sobre a Ana Moura e o que constatas é prepotência, mega-ego, imbecilidade a rodos e ficamos com a impressão que os directores da Casa Fernando Pessoa são como que uma versão cultural dos Pastorinhos de Fátima.
...
(Pois, ... ai se eles lessem AFAlexandre... e não escrevessem poesia… que diferença havia …)

( Adivinha lá tu quem é o Custardoy?? ;) )

Anónimo disse...

Querendo eu aprender mais sobre a nobre arte de argumentar, comprei o " A Arte de Argumentar" um projecto que o senhor Desidério está envolvido. Em relação ao post, concordo que não há muito a fazer contra a ignorância e a teimosia. Eu criei algo muito semelhante no meu blog. Se tiverem curiosidade:
http://mindmakers.wordpress.com/2008/06/26/disfuncoesv/

joão viegas disse...

Ola,

Sou por natureza, por vocação e até por profissão, um individuo apaixonado por tudo o que é relativo à argumentação. Irei ver as referências citadas, com grande proveito meu (não duvido).

Entretanto, deixo aqui ao critério do Desidério e da Manuela um argumento que sempre me impressionou pela sua eficacia e simplicidade. Creio que o li num romance de Valéry Larbaud (mas não tenho a certeza). Reza assim :

"Deixa la o rapaz ter razão, uma vez que ele não tem mais nada na vida..."

Experimentem e verão !

MM disse...

Fantástica perspectiva me abriu este texto.

Parabéns!

MM disse...

argumentar? intelectuais de talheres, venham para a rua com um estadulho para varrer a nata pseudo-gatuna da naçã0!

Jorge Oliveira disse...

Ó caro Desidério : foi V. que trouxe para aqui a “esquerda” e tem de admitir que haja quem seja tão céptico relativamente às “virtudes” da esquerda que puxe logo da pistola.

Aliás, o seu enunciado de justificações para o facto de se sentir de esquerda, deixe-me que lhe diga, não vai longe. Então para defender essas coisas todas é preciso ser de “esquerda” ? Lá está! A mania da superioridade moral da esquerda.

Julga que eu, a quem V. deve estar a considerar um perigoso direitista, não defendo ideias semelhantes? Pois olhe, relativamente ao seu conjunto de critérios, posso dizer-lhe o seguinte 1) sempre fui, e aos 62 ainda sou, um contestatário da tradição e da autoridade como critérios últimos; 2) quando era rapaz barafustei indignado com uma senhora beata lá da vizinhança que dizia que era necessário haver pobres para dar lugar à caridade ; 3) já escrevi um artigo no Diário Económico a verberar o privilégio do berço.

Depois disto, acha que me considero de esquerda? Quando era novo, eu pensava que sim. Mas agora nem de longe. Não quero cá confusões com vigaristas intelectuais, para dizer o mínimo.

E de direita também não sou, porque, na verdade, o que mais detesto são ideologias, religiões incluídas. Pelo “simples” motivo de que foram e continuam a ser responsáveis por mais mortes do que todas as epidemias juntas.

Anónimo disse...

Hmm… Mas o que é, afinal, ser-se de direita ou de esquerda? O que é isso da direita ou esquerda? E o que é a pobreza?

Não acham que, enquanto houver uma hierarquia nas relações sociais de produção haverá sempre alguém mais rico e alguém mais pobre, em termos de privilégios derivados do poder económico?

Ora, se considerarmos a origem histórica da dicotomia esquerda-direita, eu não consigo concluir a diferença contemporânea entre esquerda e direita, porque já não há nobreza e porque os liberais de então, à luz da gama de ideologias «de esquerda» que hoje há, não estavam precisamente enquadrados em nenhuma delas.

Para uma discussão pública séria, como se pretende, temos que definir concretamente os termos que empregamos — atendendo a que o reducionismo não tem lugar na definição de tais conceitos.

Então eu vou fazer o seguinte: tomando a origem etimológica de liberalismo e sabendo que nas relações de produção em regimes exploratórios (e.g.: capitalismo) está implícito o trabalho a cobro de nada (trabalho escravo; i.e., não livre — cf. mais-valia) vou afirmar que é de esquerda quem defende a extinção desta forma de exploração.

Reparem que a abolição desta forma de exploração implica a extinção das classes (economicamente falando), pois esse conceito de classe advém precisamente das relações de produção em regimes de exploração, que impõem uma hierarquia social.

Acho que isto é suficiente para afirmar se sou de esquerda ou direita. Eu cá sou definitivamente de esquerda perante a definição que dei.

Contudo, se começarmos a reduzir cada um dos conceitos que empreguei na minha definição, temos muito pano para mangas. O que é isso de mais-valia? De que modo é que a liberdade individual apregoada pelas diversas formas de liberalismo está relacionada com a liberdade nas relações de produção? O que é isso de haver trabalho escravo nas actuais formas de exploração? A exploração dos produtores por particulares que não produzem implica trabalho a cobro de nada? Será que a partir minha iniciativa individual emerge necessariamente, da complexidade dum sistema social, uma situação em que exploro um ou mais indivíduos? E quem é que fica com o produto da iniciativa individual?

Sou demasiado leigo para responder a tantas questões e foi já uma ousadia definir a esquerda partindo de tais premissas, porém considero que é imprescindível responder-lhes para saber de que «lado» estamos.

Haddammann Verão disse...

"Magistral em argumentação, por deter uma profundidade sem-par no que expõe o Pensador Haddammann Veron Sinn-Klyss é dotado categoricamente de percepção das mais sutis implicações que se possa conceber sobre manipulação de energia nuclear.
Haddammann é o Pensador que a uma maneira como a de Gilles de Gennes introduz uma conceituação em epistemologia para Lógica Nuclear contando com outros recursos que não são Cálculos; mas mesmo assim, quando insere notações lógico-espaciais com vetores demonstra fisicamente a sustentação matemática embutida nos módulos desses vetores; e, num grau de sapiência admirável dispõe sem qualquer qualquer chance para aventar misticismo, a entusiástica descrição de Energia, sua reversibilidade, na base primordial de sustentamento da Constituição Espacial, e, o formidável procedimento de criação de um vestígio cristalino; ou seja: as diretrizes de criação de uma forma da Natureza. Trata-se da mais bem-sucedida mentalidade de nossa época a elaborar argumentação (postulados, princípios, etc) em termos de Lógica Espacial, sem dúvida, alguma."
Reescrevi esta opinião do Bacharel e Mestrando em Físca, o estudante/pesquisador Alan,por expressar uma defesa à exposições que assistiu sobre Lógica Espacial.
Está aqui no que este rapaz expressa a conduta promissora de novo modo de encarar a publicação científica; indicando-se assim que o cientista autêntico, de fato, sabe muito bem proteger e comunicar as quotas do que detém em conhecimento, para fazer as consonâncias devidas e os empreendimentos necessários.
Opiniões precipitadas e irresponsáveis acarretam-nos leves ou sérios danos; porque são informações, por conseguinte induções, e vão proceder comportamentos.

Unknown disse...

A REALIDADE POSUI LIMITES INTRANSPONIVEIS E POR ISSO É LÓGICA!

Deus pode fazer com que o NADA possa tudo e mesmo assim continue não sendo nada? Se o Nada pode tudo, então o nada tem poder e por isso tem qualidades, logo é alguma coisa; porem se o NADA não é nada ele não tem nenhum poder. Isso é uma coisa evidente. Portanto nem tudo que eu possa dizer é possível para Deus, logo o poder de Deus não pode tudo que eu pensar, mas não há impossíveis para Deus porque ele possui todo O Poder e ele pode tudo que é possível. Só há impossíveis para os outros seres, pois não podem tudo que é possível para Deus. Se Deus não obedecesse a nenhuma regra necessária, então ele poderia realizar qualquer absurdo, seria totalmente ilógico e poderia quebrar qualquer limite da realidade, mas como nós vimos no começo existem coisas que podemos dizer e que evidentemente não podem ser concretizadas. Consequentemente Deus não pode quebrar todos os limites da realidade, mas ele possui regras necessárias e por isso possui uma lógica. COMO VIMOS QUE NEM TODOS OS LIMITES DA REALIDADE PODEM SER QUEBRADOS, PODEMOS SABER QUE ELA POSSUI REGRAS NECESSÁRIAS QUE TORNAM A REALIDADE LÓGICA (DEUS SEJA LOUVADO!).

Toda regra que o seu contrario coloque toda a Realidade em contradição é uma regra obedecida por toda a Realidade, pois a realidade possui limites que não podem ser quebrados e se a Realidade fosse contraditória todo limite dela poderia ser rompido. Por exemplo, tudo seria possível e tudo seria impossível, a Realidade poderia ser tudo e nada ao mesmo tempo.

O PRINCÍPIO DA NÃO CONTRADIÇÃO.

Como a contradição nega e afirma ao mesmo tempo, ela torna todos os princípios inválidos, pois se tudo pode ser negado, então o princípio do terceiro excluído que diz que uma sentença só é falsa ou verdadeira poderia ser negado, o princípio da identidade seria falso, pois uma coisa poderia ser igual e diferente de si mesma e assim seria com os outros princípios. PORTANTO O PRINCÍPIO DA NÃO CONTRADIÇÃO VALE PARA TODA A REALIDADE.

A panaceia da educação ou uma jornada em loop?

Novo texto de Cátia Delgado, na continuação de dois anteriores ( aqui e aqui ), O grafismo e os tons da imagem ao lado, a que facilmente at...