quinta-feira, 6 de março de 2008

Toxinas amnésicas

Numa manhã de Agosto corria o ano de 1961, a pacata localidade costeira de Capitola na Califórnia foi surpreendida por uma cena que parecia saída do livro «Os pássaros» de Daphne du Maurier, editado nove anos antes. Centenas de aves marinhas invadiram o local e atacaram os habitantes num episódio bizarro que fascinou Alfred Hitchcock, veraneante frequente na vizinha Santa Cruz. Hitchcock recolheu as notícias que fizeram as manchetes dos jornais locais numa proposta ao seu estúdio para um filme que apareceria nos cinemas dois anos depois. Está prevista para 3 de Julho de 2009 a estreia de um remake do filme.

Na altura, o nevoeiro cerrado que teria confundido os pássaros e os induzira a procurar as luzes da cidade foi a única explicação encontrada para o incidente, que não explicava o comportamento insano de pássaros habitualmente pacíficos.

Uma explicação do que de facto acontecera naquela manhã de 18 de Agosto de 1961 só foi possível em 1987 após mais de uma centena de pessoas terem ficado violentamente doentes horas depois de terem comido mexilhões em restaurantes de Prince Edward Island no Canadá. Rapidamente se constatou que não se tratava de uma intoxicação alimentar como as outras: aos sintomas iniciais somavam-se dores de cabeça incapacitantes a que se seguiu confusão, perda de memória, desorientação e, em casos extremos, tremores e coma. Algumas das pessoas afectadas exibiam volatilidade emocional com manifestações de agressividade ou choro descontrolado. Três das vítimas faleceram e outras sofreram danos neurológicos irreversíveis. Uma vez que a perda de memória era o traço comum a muitas vítimas, a condição foi designada intoxicação amnésica (amnesic shellfish poisoning, ASP)

O principal composto implicado na intoxicação do tipo amnésico (ASP), o ácido domóico (DA), foi encontrado após um estudo exaustivo levado a cabo por uma equipa de biólogos marinhos e químicos reunida pelo Department of Fisheries and Oceans (DFO) do Canadá. A tarefa desta equipa foi mais complicada que encontrar a proverbial agulha num palheiro e constitui uma verdadeira proeza química dada a enorme quantidade de compostos presente nos mexilhões e o facto de os investigadores não terem a mínima ideia de qual a estrutura do culpado pela intoxicação. Esta epopeia química, contada em detalhe em vários artigos científicos, assentou no fraccionamento de extractos dos mexilhões e seu teste em ratos até se encontrar o vilão.

O ácido domóico funciona como um cavalo de Tróia molecular. Os neurónios confundem este aminoácido com o seu parente ácido glutâmico, ou antes, confundem as formas básicas de ambos. O glutamato é um neurotransmissor excitatório que se pensa esteja envolvido em funções cognitivas como a aprendizagem e a memória. As membranas dos neurónios e da glia possuem transportadores de glutamato que retiram rapidamente este aminoácido do espaço extracelular já que o seu excesso é altamente tóxico para os neurónios. A acumulação de glutamato no espaço extracelular provoca a entrada de iões cálcio (Ca2+) nas células originando danos neuronais e eventualmente morte celular (apoptose)num processo conhecido por excitotoxicidade.

De facto, elevadas concentrações de glutamato funcionam como uma excitotoxina - excitam os neurónios até à morte num processo em cascata que estimula células vizinhas. A estrutura mais rígida do DA faz com se ligue mais fortemente aos receptores de glutamato. Como resultado, o poder excitatório do domoato é entre 30 a 100 vezes maior que o do glutamato.

Alguns cientistas consideravam na altura que o ácido domóico, isolado em 1958 a partir de uma alga vermelha, doumoi ou hanayanagi, usada como tratamento tradicional para combater parasitas intestinais no Japão, não poderia ser o culpado pelo ASP já que não existiam na literatura nenhumas indicações de toxicidade da alga ou de extractos da alga. Mas estes extractos utilizados como remédios contêm no máximo 20 mg de ácido domóico enquanto algumas das vítimas do episódio de 1987 consumiram cerca de 290 mg de DA acumulado nos bivalves que se alimentaram de diatomáceas Pseudonitschia.

Desde 1987 que a análise de ácido domóico em marisco e peixe comerciais é um procedimento habitual e não há registos de mais intoxicações amnésicas. Mas embora sem repercussões na saúde humana, os blooms regulares destas algas microscópicas que têm ocorrido nos últimos anos acarretam consequências trágicas na fauna marinha, nomeadamente da costa californiana, afectando leões marinhos, golfinhos, baleias e pelicanos, entre outros.

As dimensões que este problema começa a assumir e o facto de a bioacumulação de toxinas produzidas pelo fitoplâncton não se restringir ao ácido domóico, tornam premente que se leve a sério o aviso recente da revista Science sobre os riscos de empreendimentos como os da empresa Planktos, que pretende vender créditos de carbono supostamente obtidos da sequestração de carbono nos oceanos via sementeiras de ferro (e aumento da quantidade de fitoplâncton). E tornam especialmente urgente que todos nos apercebamos quão vulneráveis estamos se não fizermos algo para salvar os nossos oceanos!

6 comentários:

Isabel disse...

história fantástica, parabéns. mas se calhar não li com atenção mas não me ficou muito claro: o comportamento dos pássaros foi também explicado por intoxicação com o DA?

Palmira F. da Silva disse...

Olá Isabel:

Embora na altura não tenham sido feitas análises ao DA aos pássaros pensa-se de facto que foi uma intoxiacação com DA a responsável pela loucura dos mesmos.

Bruce Lóse disse...

Mais cinco, Pal. Fez-me lembrar Minamata.

Estou só à procura de uma rede, porque "insane" é uma palavra nova. "Insano" já tenho em algodão com alfinete na tónica.

Palmira F. da Silva disse...

Caro bruce:

Obrigado pela detecção da gralha que já corrigi. Aproveito para agradecer os amáveis comentários dos últimos tempos :-)

Bruce Lóse disse...

Palmira, as minhas graçolas são como o feijão-frade: não fazem bem mas também não fazem mal. Dê-me o prazer de acreditar que compreende, é por isso que lhas deixo em obséquio.

(e já agora, assumo apenas a responsabilidade dos meus comentários... aquela do "peso da planta húmida" não fui eu)

paulu disse...

Já não bastava o lixo, a lavagem de tanques dos petroleiros, os derrames disto e daquilo, as artes de pesca com malhas assassinas, as linhas e redes abandonadas pelos pescadores, a invasão, com gatos, turistas e faróis, dos ilhéus de nidificação – só cá fazia mesmo falta agora eram umas algas maradas...

As aves marinhas são das mais ameaçadas do planeta, e, infelizmente, dados o seu habitat e parca “colunabilidade”, a percepção do seu desaparecimento é pouco evidente para a maioria das pessoas. Bem que se dispensavam mais sarilhos....

Não obstante, não fiquei seguro se uma intoxicação com ácido domóico será a melhor explicação para o fenómeno ocorrido em 1961, em Santa Cruz, na Califórnia. Os recortes de jornal acedíveis pela hiperligação não falam genericamente em aves marinhas, mas referem em concreto «sooty shearwaters» - em português, pardelas-pretas. A ser assim, porque razão só esta espécie foi afectada, e não são referidos comportamentos desajustados em indivíduos de outras espécies de aves marinhas, que ocorrem na região, e têm a mesma fonte de alimento?

Por outro lado, a explicação de Ward Russell – o zoólogo de serviço – ainda que possa não parecer muito convicta, também não soa a disparate: é simples, abarca a situação anómala com o tempo atmosférico nesse dia, e restringe-se à espécie afectada.

Mas isto é marginal em relação ao seu artigo, que achei – para não variar – muito interessante.

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