domingo, 23 de março de 2008

A ciência da religião

Where angels no longer fear to tread, The Economist, 19 de Março.

O post do Desidério sobre «Interferência arbitrária», nomeadamente a parte em que ele refere ser «a interferência arbitrária na vida das pessoas» que «torna possível a religião», recordou-me este artigo muito interessante da The Economist que o Luís Alcácer teve a gentileza de me enviar.

O artigo gira em volta de um projecto da Comissão Europeia, que em 2007 atribuiu 2 milhões de euros a um consórcio que integra centros que investigam religião do ponto de vista psicológico, biológico, antropológico e histórico. O objectivo do projecto «Explicando a religião» (descrição em formato pdf) é o desenvolvimento de um programa integrado de pesquisa sobre as bases cognitivas do pensamento e comportamento religiosos.

O projecto é coordenado por Harvey Whitehouse, um antropólogo que nos anos oitenta estudou um mui curioso fenómeno religioso de algumas ilhas do Pacífico Sudoeste, que surgiu em muitas depois da II Guerra Mundial. Esse fenómeno, comum na região da Melanésia e Nova Guiné e muito estudado pelos antropólogos, é designado por «cultos da carga». Pensa-se que existiram cerca de 70 formas diversas de «cultos de carga» dos quais a variante que adora o messias John Frum («Hello, I´m John from America») persiste até hoje no micro-Estado de Vanuatu.

A experiência com os «cultos da carga» permitiu a Whitehouse o desenvolvimento de uma teoria sobre dois modos divergentes de religiosidade, doutrinal e imagístico, classificados a partir dos diferentes processos de codificação e transmissão de conhecimento religioso. O ponto de partida para o seu modelo tem por base a dicotomia entre a memória semântica (representações mentais de uma natureza geral, criadas pela repetição de aspectos rituais) e a memória episódica - representações mentais de eventos experimentados pessoalmente pelo próprio ou por um membro do grupo com que se identifica.

A teoria de Whitehouse, assim como o seu livro «Theorizing Religions Past: Archaeology, History, and Cognition», são fascinantes mas certamente mais fascinante será o resultado deste projecto que reúne especialistas dos vários aspectos da religião, como Patrick McNamara, que dirige o Evolutionary Neurobehaviour Laboratory da Boston University's School of Medicine, Nina Azari, neurocientista da University do Hawaii em Hilo que detém igualmente um doutoramento em teologia, ou Richard Sosis, um antropólogo da Universidade de Connecticut. Foi o trabalho deste último descrito no artigo do The economist que o post do Desidério me recordou.

Sosis recorreu a um catálogo de comunidades da América do século XIX publicado em 1988 por Yaacov Oved da Universidade de Tel Aviv, analisando o percurso de 200 dessas comunidades, 88 delas religiosas e as restantes 112 seculares. Sosis verificou que as comunidades seculares, que não interferiam arbitrariamente na vida dos seus membros, tiveram durações em média quatro vezes menores que as suas análogas religiosas. Nestas últimas, quanto mais interferências arbitrárias impunham aos seus membros maior a sua longevidade - uma delas sobrevive ao fim de 149 anos enquanto a comunidade secular mais longeva dissolveu-se ao fim de quarenta anos.

O estudo da religião numa abordagem científica multidisciplinar é nesta época conturbada por fundamentalismo sortidos uma área que atrai cada vez mais cientistas de que este projecto, a conferência «Evolução da Religião» - que decorreu em Janeiro do ano passado e reuniu muitos dos especialistas deste consórcio - ou a emergência de áreas como a neuroteologia são apenas exemplos. A ciência da religião não pretende investigar a «verdade» de uma religião mas sim as suas manifestações empíricas. De facto, se a discussão da existência de deuses não é tema que diga respeito à ciência mas sim à filosofia, a religião e as experiências religiosas são manifestações muito observáveis que podem ser analisadas como todos os fenómenos do único mundo que conhecemos: um mundo natural que os cientistas tentam entender e descrever.

9 comentários:

Anónimo disse...

Considero o projecto aprovado pela Comissão Europeia deveras excitante e espero que os 2 milhões de euros sejam bem empregues. Mas é um estudo muito perigoso. Imagine-se, por exemplo, que o projecto chegue a conclusões do tipo "a falta de religião é uma doença" ou "é-se ateus porque se tem uma deficiência cerebral". Olho sempre para estes estudo com algum cepticismo e penso que as suas conclusões devem ser sempre encaradas com espírito crítico, sejam elas quais forem.

Unknown disse...

Eu já conhecia as cargo religions que sempre achei uma ilustração perfeita da origem das religiões (todas...).

Não conhecia este projecto que me parece não só muito excitante mas também muito necessário numa altura em que os fanáticos de todas as religiões se agitam para impor a todas as suas interferências arbitrárias, patetas e muitas vezes criminosas.

Estou com uma certa curiosidade sobre os tais dois modos divergentes de religiosidade, doutrinal e imagístico. Mas quaisquer que sejam as representações mentais da religiosidade acabam sempre em patetadas tipo John Frum.

Unknown disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Unknown disse...

António Parente:

Até chego a ficar comovida com a sua preocupação connosco, pobres e doentes ateus :))))))))))

Até agora aquilo que se descobriu a nível neurológico é muito interessante mas o António Parente pode ficar sossegado sobre as conclusões: muito daquilo que as pessoas descrevem como experiências «transcendentes» são na realidade ilusões, episódios esquizofrénicos, epilepsia do lobo temporal, etc..

Os ateus, como Dawkins, são menos atreitos a este tipo de disfunções mesmo as induzidas electromagneticamente. Dawkins com o capacete de deus de Michael Persinger só se sentiu ligeiramente tonto em vez de ter as experiências "místicas" dos mais religiosos.

Pensa-se que a interferência magnética cause a "separação" dos dois hemisférios o que dá uma sensação de uma "presença do Além", um amigo invísivel.

Unknown disse...

Há um livro muito giro de um porfessor de Princeton Julian Jaynes de 1976 , The Origin of Consciousness in the Breakdown of the Bicameral Mind

Jaynes propunha que tão recentmente como há uns poucos milhares de anos os dois hemisférios do cérebro eram como que duas pessoas diferentes. Os sinais provenientes do hemisfério direito eram intepretados pelo esquerdo como a voz de deus. Foi a "fusão" dos dois que permitiu a formação do ser com a sua voz interior racional.

Com essa fusão, tirando uns quantos casos sintomáticos que a psiquiatria explica, a voz de deus emudeceu e as religiões que existem são recordações culturais dos tempos em que os nossos hemisférios cerebrais não comunicavam muito bem :)))

Sérgio O. Marques disse...

Realmente, no único mundo natural que conhecemos, para que servem tantas leis constitucionais e afins, quando já temos as leis da física? E devo confessar que, mesmo para quem percebe um pouco delas, não assim são tão simples por si só.

perspectiva disse...

Antes de procurarem dar uma explicação evolucionista para a religião, os evolucionistas deveriam concentrar-se em procurar a explicação evolucionista para coisas mais básicas, como o cérebro humano.

Uma crónica da recente reunião da American Association for the Advancement of Science, em Boston, permite mostrar quão disparatada é a tentativa evolucionista de explicar tudo quando não explicou questões fundamentais.

Nessa reunião, Richard Lewontin, um conhecido evolucionista naturalista ateísta de Harvard, admitiu publicamente que os cientistas estão totalmente às escuras em matéria de evolução do cérebro.

Ou seja, os mesmos não fazem a mais pequena ideia acerca do modo como o cérebro, com a sua complexidade e capacidade massiva, alguma vez poderia ter evoluído com base em mutações aleatórias e selecção natural.

O pessimismo de Richard Lewontin baseava-se nalguns pontos fundamentais, como sejam:

1) a inpossibilidade de deduzir com certeza as linhas de ancestralidade a partir dos fósseis dos supostos hominídios;

2) a dificuldade que rodeia a interpretação dos fósseis (Lewontin confessou não fazer a mais pequena ideia do significado de capacidade craniana de um fóssil de um suposto hominídio);

3) dúvidas sobre a determinação dos hominídios que andavam erectos.

Ou seja, os evolucionistas não têm quaisquer pistas sólidas acerca das causas e dos efeitos dos artefactos que têm vindo a estudar e com base nos quais têm construído as suas fantasias.

Isto, apesar dos milhares de trabalhos científicos publicados em revistas científicas e das incontáveis primeiras páginas da revista National Geographic.

É interessante notar que isto não foi dito pela organização criacionista Answers in Génesis, mas por Richard Lewontin, o conhecido evolucionista.

O mesmo disse que a própria definição do que seja a evolução da cognição está rodeada de incerteza.

É claro que a Answers in Genesis concorda inteiramente com Lewontin nesta matéria.

As considerações de Lewontin são especialmente interessantes, tendo em vista as recentes notícias que dão conta de que o “facto” da suposta divergência dos chimpanzés e dos seres humanos há cerca de 6 milhões de anos também está a ser posta em causa por evolucionistas (Aaron Filler, de Harvard e outros) que dizem que afinal os chimpanzés é que evoluíram a partir de hominídios erectos!!

A evidência parece dar para tudo.

Os criacionistas afirmam que ela é inteiramente com a doutrina de que macacos sempre foram macacos e homens sempre foram homens, assim como gaivotas sempre foram gaivotas e moscas sempre foram moscas.

É interessante notar que Marc Hauser (um psicólogo de Harvard) corroborou o pessimismo de Lewontin, ao chamar a atenção para o facto de que o fosso entre os seres humanos e os outros animais inteligentes é maior do que o fosso entre estes e os vermes, chamando a atenção para a unicidade e singularidade da cognição humana.

Os animais têm uma inteligência focalizada (“laser-beam intelligence”), aplicável a um conjunto reduzido de problemas, ao passo que os seres humanos têm uma inteligência ampla e iluminadora (“floodlight intelligence”), aplicável a um vasto conjunto de problemas.

O autor salientou a “humanicidade” que distingue os seres humanos dos outros animais, na esperança de que isso contribua para uma futura compreensão da evolução humana.

No entanto, essa “humanicidade” é já hoje inteiramente consistente com a doutrina bíblica de que os seres humanos foram criados à imagem e semelhança de Deus.

Professor Indignado disse...

Apesar do adiantado da hora, apreciei muito o artigo.

É um tema apaixonante, quer se procure encontrar Deus, quer simplesmente se procurem as ideias humanas sobre Deus.

Anónimo disse...

Resta agora saber com que propósitos, ou com que fins políticos, são incentivados estes estudos pela UE. Em época de crise económica, financiar um projecto como este parece interessante à partida mas, pelo caminho, há que desconfiar: o complexo orweliano do poder passará certamente também pelo controlo religioso.

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