sexta-feira, 29 de fevereiro de 2008

Lendas urbanas: detergentes cancerígenos


Ontem recebi uma mensagem com assunto «ALERTA importante» que abri por o remetente ser uma pessoa conhecida. Li por alto a mensagem, um chorrilho de sandices que tinha circulado nos Estados Unidos em 1998 e que versava sobre o «Lauril Sulfato de Sódio», supostamente «uma substância altamente cancerigena. (1 caso em 3 adquire)».

A adaptação nacional desta lenda urbana, aparentemente iniciada por vendedores de produtos «alternativos» ou «100% naturais», conseguia a proeza de ser ainda mais cretina que a versão original e por isso nem pensei mais no assunto uma vez que pensei que apenas os erros de português fossem suficientes para não enganar ninguém. Erro meu: a minha caixa de correio está inundada com pedidos de esclarecimento sobre a dita mensagem, alguns, tal como aconteceu à Sofia, de familiares. Li de novo o «Alerta» inicial, que numa leitura mais atenta revelou disparates que escaparam à leitura na diagonal.

Como todas as «boas» lendas urbanas, esta iniciava-se com um argumento de autoridade: a cretinice que se seguia era supostamente da autoria da (inexistente) Faculdade de Ciências de Lisboa. O alerta indicava que os leitores «Devem procurar o nome do composto em inglês: Sodium Laureth Sulfate» aparentemente porque quem o escreveu é tão ignorante que confundiu o lauril éter sulfato de sódio (SLES) com lauril ou dodecil sulfato de sódio (SLS ou SDS), o primeiro muito utilizado em cosmética, o segundo mais utilizado em produtos de limpeza (e em laboratórios de investigação, há pelo menos uns três frascos de SDS no meu).

Reza a mensagem que «Esta substância faz parte da composição da maioria dos champôs pois os fabricantes utilizam-na por ela produzir muita espuma a baixo custo. No entanto o LSS é usado para lavar chão de oficinas (é um desengordurante)».

Estes sais produzem muita espuma porque são moléculas tensioactivas, isto é, baixam a tensão superficial da água. São igualmente moléculas anfifílicas e estas espécies agregam-se em água formando micelas, com as cabeças hidrofílicas para fora e as caudas hidrofóbicas no interior, como se tivéssemos gotas de gasolina dispersas em água. Assim, gorduras e outras substâncias que não sejam solúveis ou miscíveis com a água são dissolvidas no interior das micelas. Soluções de detergentes, qualquer detergente, são bons desengordurantes e é normalmente para esse fim que as utilizamos, seja em detergente da roupa ou do chão, shampoo ou gel de banho.

Ambos os detergentes (biodegradáveis) são derivados do ácido láurico, um ácido gordo saturado que se encontra em vários óleos vegetais - é o principal constituinte do óleo de coco, cerca de 50% -, e no leite humano (onde constitui cerca de 6% da gordura total). A sua toxicidade é baixissima embora possa ser irritante para membranas mucosas (não convém muito esguichar óleo de coco para os olhos e o mesmo acontece com a espuma obtida com estes sais).

Há uns anos recebi outro pedido de esclarecimento em relação a um composto igualmente identificado como muito cancerígeno. Nessa altura o «vilão» era um aditivo alimentar, o E330, que não passa do ácido cítrico presente em inúmeras frutas, citrinos e, por exemplo, maçãs. Algumas das pessoas que esclareci não ficaram convencidas à primeira porque teimavam que embora o E330 e o ácido cítrico do limão fossem uma e a mesma molécula, a primeira era um «químico» e o sumo de limão era um produto natural.

Para além de não acreditarem nos disparates que todos recebemos por correio electrónico, tal como no caso do esqualeno, esperemos que cada vez mais pessoas se apercebam que o prefixo bio ou o 100% natural no nome de um composto químico não lhe altera as propriedades. A perigosidade quer do SLES quer do SDS não aumenta drasticamente pelo facto de serem obtidos por transformação química de óleos vegetais. Podem irritar peles mais sensíveis por serem bons detergentes, isto é, removerem eficientemente a camada de óleo da pele, mas não são tóxicos muito menos cancerígenos!

10 comentários:

Luís Bonifácio disse...

Perigoso, perigoso é o Óxido de Di-hidrogénio. Mata que se farta! :)

Bruce Lóse disse...

Luís, não desdenhar do afogamento!

Mais cinco estrelas na Palmira.
Gostava também de lhe contar uma anedota sobre a Sra. Esther Mucznik pugnando pelo ensino do criacionismo nas escolas, mas esqueci-me completamente.
Ai a minha cabeça.

Bruce Lóse disse...

NOTA:

Não faço ideia se foi exactamente pelo criacionismo que se bateu a Sra. Esther Mucznik aquando da intromissão de diversos representantes religiosos na discussão dos conteúdos dos manuais escolares.
Repito: estou-me nas tintas.

A Comunidade disse...

Sendo os compostos em causa mais ou menos inócuos para seres "superiores" qual será o efeito quando chegam às linhas de água?
Complicam a absorção de O2 por formarem películas superficiais? São mesmo facilmente biodegradáveis?
E no que toca a sabonetes, elixires e similares que prometem erradicar 99,9% das bactérias?

lino disse...

Eu também recebi e arquivei no caixote do lixo. E lá no meio havia uma mensagem: todos os produtos tinham o tal elemento cancerígeno, excepto o champô Vidal Sassoon. Curioso!

Palmira F. da Silva disse...

Caro Osvaldo:

Devo confessar que não percebo muito bem o seu comentário.

O post discutia uma mensagem que pretendia dissuadir as pessoas de usarem compostos completamente inócuos para sua saúde com o falso pretexto de que eram «altamente cancerígenos».

Se há pessoas que acham que se deve deixar de usar esses produtos, como aparentemente é o caso de quem lançou este falso boato, achou anti-ético que pretendam atingir esses objectivos com mentiras.

Pelo menos para mim os fins não justificam os meios.

Palmira F. da Silva disse...

Em relação aos detergentes em geral, não formam películas à superfície da água: adsorvem-se positivamente formando uma monocamada que é permeável aos gases, ou seja, não há problemas com o O2.

Em cursos de água doce não é grande ideia ter concentrações elevadas de detergentes: os tensioactivos aumentam a molhabilidade e a água desses cursos passa a molhar as penas das aves que lá poisem e elas podem afundar com o aumento de peso e a não conseguir voar.

Smith disse...

Uma coisa é certa do SLS (Sodium lauryl sulfate ou sodium dodecyl sulfate) utilizado em quase todos os produtos de limpeza "em forma pura" é irritante para os pulmões que se farta - experimente no laboratório respirar um pózinho inadevertidamente é vai ver. Por causa disso fui ler com muita atenção a MSDS (aldrich) e o facto é que está claramente indicado que para que "experiências laboratóriais demostram efeito mutagênico" sob exposição crónica.
Parece que as coisas não são tão preto no branco como pensa...

Palmira F. da Silva disse...

Caro smith:

Tenho por hábito evitar respirar qualquer pózinho, com especial cuidado para os pós mais "fininhos", mesmo que seja areia: são todos irritantes e para todos os testados os resultados experimentais indicam efeitos mutagénicos.

Por isso existem as máscaras e todos os que trabalham com pós as devem utilizar, seja pó de diamante, carvão, areia, vidro - os efeitos deste último suponho serem bem conhecidos, não apenas os irritantes mas também os mutagénicos...)

Mas tanto quanto saiba nem o diamante nem o carvão, areia ou o vidro são normalmente considerados produtos tóxicos ou mutagénicos...

Sérgio Rodrigues disse...

Palmira,

Esses mails são irritantes e voltam periodicamente. Há o do shampô e também o do desodorisante, envolvendo o cloreto de alumínio, e muitos mais. Já tinha escrito sobre isso escrito quando o mail foi citado na rádio

Acreditar é mais fácil que pensar...

Muito bom o post sobre o ácido domóico!

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