quinta-feira, 22 de novembro de 2007

Deus, religião e argumentos II

O argumento dos milagres

O argumento dos milagres é de todos provavelmente o mais fraco; mesmo os filósofos da religião que são crentes, como Richard Swinburne, não aceitam o argumento dos milagres sem qualificações (ele defende que só depois de termos provado que Deus existe podemos ter algumas razões para pensar que existem milagres). O argumento é o seguinte:

Tal e tal acontecimento é milagroso.

Só Deus pode fazer milagres.

Logo, Deus existe.

O argumento é fraco porque a menos que já aceitemos que Deus existe, nenhum acontecimento é mais provavelmente milagroso do que pura e simples ilusão, fruto da ignorância ou da mentira. Este é o contra-argumento de Hume ao argumento dos milagres: sabendo-se quão propensas são as pessoas a auto-iludir-se, há sempre explicações mais plausíveis dos acontecimentos pretensamente milagrosos do que declarar que são milagres.

O argumento da experiência religiosa

Muitos crentes consideram algo irrelevantes os argumentos a favor da existência de Deus. A sua própria vivência religiosa, as suas emoções, o seu modo de vida — estes são os elementos que fazem da religião uma coisa viva, e não uma mera abstracção teórica. Contudo, este é apenas um tipo diferente de argumento: é uma razão para ser crente. As pessoas são crentes porque têm um certo tipo de experiências religiosas. A questão é saber se tais experiências religiosas justificam a crença na existência de Deus.

Há poderosas objecções ao argumento da experiência religiosa. Vejamos duas delas.

Em primeiro lugar, há o problema da diversidade religiosa. Não se pode conceber a religião como uma mera abstracção geral: as pessoas não são apenas religiosas, abstractamente; são budistas, ou islâmicas, ou judaicas. Pertencem a uma determinada religião. Ora, estas religiões são incompatíveis entre si. Há religiões politeístas, religiões sem Deus (como o budismo), religiões em que Deus é uno, religiões em que Deus é uno e trino. A experiência religiosa aparentemente justifica qualquer religião, e por isso mesmo não justifica realmente qualquer uma delas. As pessoas têm certas experiências, que são socialmente induzidas, e essas experiências estão sistematicamente ligadas à cultura em que a pessoa está inserida. Se a experiência religiosa tivesse algum peso, teria de dar a uma pessoa nascida numa cultura cristã, por exemplo, uma experiência que a fizesse tornar-se politeísta, por exemplo. Mas isso nunca ou raramente acontece, o que sugere que a experiência religiosa é apenas um reflexo ilusório do que as pessoas querem experienciar.

Em segundo lugar, do facto de se ter um certo tipo de emoções quando se medita ou quando se está só numa montanha, ou quando se reza, nada se segue realmente — a menos que depois essa experiência seja interpretada. A experiência bruta de uma presença infinita, de uma bondade e beleza transcendentes, que muitos crentes têm, nada nos diz sobre a existência de um deus; pode ser uma reacção biológica natural, um estado natural do cérebro em certas situações. Pode ser simplesmente o resultado da complexidade do nosso cérebro. Qualquer explicação deste género é mais provavelmente verdadeira do que a ideia de que tais experiências existem porque um qualquer deus comunicou de facto com essa pessoa.

O argumento moral

Quando os avanços da ciência tornaram cada vez mais implausível a ideia de que precisávamos da hipótese de Deus para explicar o mundo, tornou-se muito popular um argumento que tem várias versões, mas se baseia sempre na mesma ideia fundamental: Deus é o garante da moralidade. Este argumento foi particularmente popular no séc. XIX, tendo até alguma expressão literária — "Se Deus não existe, tudo é permitido" é uma frase de Fiódor Dostoiévski (do romance Os Irmãos Karamazov) que muitas pessoas conhecem. Na verdade, uma das primeiras versões do argumento moral foi defendida por Immanuel Kant, no séc. XVIII. Contudo, Kant não usou a versão que viria a tornar-se popular, pois não pensava que o fundamento da moral era Deus. Efectivamente, esta ideia é inaceitável para a generalidade dos filósofos, que sabem desde o tempo de Platão que tal coisa é quase indefensável. No diálogo Êutífron, Platão apresenta uma objecção fatal a esta ideia, que ficou conhecida como o Dilema de Êutífron, e que podemos parafrasear assim: o bem é um bem porque Deus o quer, ou Deus quer o bem porque é um bem? A primeira alternativa não é aceitável porque tornaria o bem uma arbitrariedade da vontade divina: caso Deus quisesse, o homicídio seria um bem, o que é absurdo. O que se passa, ao invés, é que Deus, por ser bom, não quer tais coisas; só quer o bem. Mas isto significa que Deus não é o autor, digamos assim, do bem. Matar pessoas inocentes é mau por causa das pessoas inocentes, e não por causa de Deus. E por isso, quer Deus exista quer não exista, o bem e o mal permanecem iguais.

Popularmente, contudo, a ideia é que sem um Deus que castiga e recompensa, não há realmente razões para agir moralmente. É esta a ideia de Dostoiévski. Esta ideia revela uma imensa incapacidade para compreender o pensamento ético, pois põe tudo em termos de interesse estritamente pessoal: não mato pessoas inocentes porque tenho o interesse pessoal em não ir para o inferno e em ir para o céu. Além de terrivelmente calculista, isto nada tem a ver com a acção ética. Ora, Kant sabia disto também. Por isso, concebeu um argumento moral algo diferente, que contudo nunca teve grande influência — nem na bibliografia especializada, nem junto do grande público. Eis uma versão possível do seu argumento:

Temos o dever moral de promover o bem supremo.

Se temos tal dever, o bem supremo tem de ser possível (porque não temos o dever de fazer o impossível).

Se Deus não existisse, o bem supremo não seria possível.

Logo, Deus existe.

Este argumento é válido, apesar de não ser exactamente deste modo que Kant o apresenta. Dado que é válido, as suas premissas justificam a sua conclusão.

A questão é saber se as suas premissas são verdadeiras. Ora, a segunda premissa parece basear-se numa confusão. Mesmo aceitando que temos o dever moral de promover o bem supremo (que podemos definir como um estado moralmente perfeito do mundo, por exemplo), daí não se segue que o bem supremo tem de ser possível. Afinal, temos o dever de tentar salvar a vida de uma pessoa moribunda, mas nem sempre tal coisa é possível; o que se passa é que temos o dever de tentar. Esta é a primeira objecção ao argumento.

A segunda objecção é que não temos realmente o dever de promover o bem supremo; temos apenas o dever de viver eticamente, de promover o bem que podemos promover claramente, e não uma abstracção estranha que seria o bem superlativo.

O problema do mal

Percorremos vários argumentos tradicionais a favor da existência de Deus, que correspondem às principais famílias de argumentos deste tipo. Contra a existência de Deus, contudo, levanta-se o argumento do mal. A versão mais antiga do argumento do mal deve-se a Epicuro, mas chegou até nós ironicamente por via de Lactâncio, que era cristão:

"Ou Deus quer impedir o mal e não pode, ou pode mas não quer. Se quer mas não pode, é impotente. Se pode, mas não quer, é malévolo. Mas se Deus quer e pode, de onde vem então o mal?"

A ideia é que a existência de um Deus todo-poderoso, criador, sumamente bom e omnisciente é incompatível com a existência óbvia de mal no mundo.

Há dois tipos de mal: o mal natural e o mal moral. O primeiro diz respeito a coisas como terramotos, doenças, secas, etc. O segundo resulta das acções humanas: roubos, homicídios, etc.

A resposta mais popular ao argumento do mal é invocar o livre-arbítrio. Assim, o mal moral existe porque as pessoas são livres, e por mais que Deus seja omnipotente, a liberdade é um valor tão importante que decidiu fazer-nos livres apesar de saber o que isso iria implicar. Esta resposta é muito discutida e analisada cuidadosamente na bibliografia especializada. Enfrenta várias dificuldades, das quais se destaca três.

Em primeiro lugar, é imoral. O mal, natural e moral, que sem Deus é apenas uma consequência da maldade humana ou do acaso natural, torna-se uma monstruosidade moral porque foi devidamente planeado por Deus. Pior do que haver terramotos e homicídios é tal coisa ter sido prevista por Deus, que mesmo assim fez o mundo e os seres humanos tal como fez. E como é óbvio poderia ter feito as coisas de outra maneira: afinal de contas, no paraíso as coisas não são assim.

Em segundo lugar, não é fácil aplicar a defesa do livre-arbítrio ao mal natural, ainda que possamos aplicá-la ao mal moral. Os terramotos não resultam do livre-arbítrio humano. A resposta habitual a este problema é defender que Deus fez as leis da natureza como fez, e não nos protege sistematicamente das suas arbitrariedades trágicas, para nós aprendermos e crescermos espiritualmente. Ou seja, o mundo é uma espécie de campo de treinos, e todo o sofrimento foi por Deus planeado para que possamos crescer espiritualmente. É um pouco como pegar num filho e cortar-lhe uma perna, para ele aprender o que é a vida. Dado que isto é moralmente repugnante, segue-se que não existe tal Deus.

Em terceiro lugar, mesmo tendo criado as pessoas com livre-arbítrio, e admitindo que, por exemplo, as leis da natureza não poderiam ter sido diferentes do que são, não há qualquer razão para pensar que Deus não poderia ter feito as pessoas mais éticas. Afinal, as pessoas mais éticas não são com certeza menos livres do que as outras. Uma boa pessoa, altruísta e verdadeira, é tão livre quanto um homicida mentiroso e hipócrita. Perante isto, a hipótese de que as pessoas são o que são em função da simples evolução natural é muitíssimo mais plausível do que sob a hipótese de que Deus as criou com uma alma imortal.

Duas confusões

Uma confusão comum quando se fala de filosofia da religião é pensar-se que não definimos adequadamente o deus de que estamos a falar. Isso é falso. Em qualquer bom livro de filosofia da religião começa-se precisamente por definir as propriedades básicas do tipo de entidade cuja existência queremos discutir. Geralmente, o que está em causa é a existência ou não de uma qualquer entidade que seja omnipotente, omnisciente, criadora, pessoal e sumamente boa (ser pessoal significa que não é uma força da natureza, por exemplo). Chama-se a qualquer deus que tenha estas propriedades um deus teísta (distinguindo-se de outros deuses, como os deuses romanos, por exemplo, que não tinham todas estas propriedades conjuntamente).

Outra confusão comum quando se fala de filosofia da religião é pensar que toda esta discussão sobre a justificação das crenças religiosas é irrelevante porque as pessoas crentes não são crentes por causa de tais justificações. Mas que isto é uma confusão vê-se facilmente se pensarmos que a maior parte de nós acredita que nenhum objecto pode viajar mais depressa do que a luz, sem o podermos justificar primariamente; mas daí não se segue nem que não há boas razões para ter tal crença nem que não é interessante e importante descobrir se há ou não tais razões.

Leituras

Estas notas mal tocam na superfície da filosofia da religião. Apresentei versões simplificadas dos argumentos tradicionais hoje em dia discutidos pois dificilmente se compreende os argumentos actuais sem compreender estas versões simplificadas. Para saber mais sobre esta área, aconselho os seguintes livros introdutórios:

  • Será Que Deus Existe?, de Richard Swinburne (Gradiva)
  • The Miracle of Theism, de Mackie (Oxford)
  • Philosophy of Religion, de Rowe (Wadsworth)
  • Philosophy of Religion: A Guide and Anthology, org. Brian Davies (Oxford)

Bom estudo!

31 comentários:

Anónimo disse...

A tentativa de se explicar Deus e Fé com recurso à racionalidade analitica, poderá ser sempre um belissimo exercicio de retórica prática mas com os resultados de sempre ! Goste-se ou não da ideia, o certo é que a Fé numa Divindade qualquer é um traço cultural transversal à humanidade. A História dos Homens está bem recheada de exemplos. A discussão filosófica dos traços comuns que despoletaram essa "necessidade", seria bem mais interessante. Há quem goste de ir por aí e trilhe a tese do exercicio do poder. Ajusta-se. Mas como Levi Strauss demonstrou, é pouco para explicar tanto.
Confesso que há dias em que me sinto deveras tentado a arrumar a Fé a Origem do Universo na mesma prateleira das coisas em que nem vale a pena mexer. A sensação que fica é que é uma ocupação de desocupados que não encontram nada de mais imediato e concreto para dar sentido aos dias !

Anónimo disse...

Bom post!

"uma qualquer entidade que seja omnipotente, omnisciente, criadora, pessoal e sumamente boa"

isto nao me parece uma definicao satisfatoria, mas o problema pode ser meu... (de qq. modo, o problema do mal deita por terra esta definicao)

Desidério Murcho disse...

Caros leitores

Obrigado pelos vossos comentários.

Mariano, não há qualquer racionalidade analítica ou sintética; há apenas a nossa tentativa de justificar as nossas ideias. E é claro que há quem não tenha paciência para tentar justificar as nossas ideias. Mas qualquer justificação da ideia de que não vale a pena tentar justificar as nossas ideias religiosas é auto-contraditória.

Em segundo lugar, do facto de as crenças religiosas existirem em todas as sociedades humanas não se pode extrair a inutilidade de tentar saber se tais crenças são ou não sustentáveis. Afinal, todas as sociedades humanas acreditam que os objectos caem, mas saber se tal crença tem ou não justificação faz todo o sentido e sempre fez parte da ciência.

A religião não é um domínio especial das nossas ideias e práticas, cuidadosamente preservada da nossa melhor atenção crítica. Compreendo que as pessoas em geral não se interessem pela discussão filosófica da religião, tal como as pessoas em geral não se interessam por química. Mas dizer que quem se interessa por tais temas é um inútil que não tem nada de melhor para fazer é pura cegueira cognitiva: incapacidade para compreender quaisquer interesses cognitivos que não os nossos.

Fernando Dias disse...

Contraditório, por partes:
Agumento da experiência religiosa.

1 – As pessoas podem ter certas experiências não necessariamente induzidas pela sociedade. Uma experiência mística pode ser puramente biológica e como o homem é biologicamente igual em toda a parte, uma dada experiência mística pode também sê-lo.

2 – O que muda é a comunicação do facto ao resto da sociedade. Linguagem, narrativa e cultura que cada um aprende em cada sociedade já conta. Assim, em cada contexto social essas experiências são enquadradas e narradas de maneira diferente. Passa-se aquilo que alguns antropógos referem como a passagem do esotérico para o exotérico.

3 – Na maior parte das vezes a experiência religiosa “acontece”, assim como “acontece” a experiência estética da arte. Não é um reflexo do que as pessoas querem experienciar. Depois, em cada época histórica e contexto social assim ela se exprime. Mas o tipo de expressão exterior da arte ou religião nada tem a ver com a experiência interior, que é biológica e transversal a toda a humanidade. Só que, apesar de ser transversal, não significa que todos passem por isso. Muitos nascem e morrem, e estes fenómenos passam-lhes ao lado.

4 – Concordo com Desidério que a experiência bruta de infinito (arte ou religião), nada nos diz sobre a existência de um deus. Mas já não concordo quanto aos modelos explicativos. Não há nenhum modelo explicativo satisfatório que chegue perto destes fenómenos. Por isso, ao nível das explicações, cada uma vale eo que vale desde que bem enquadrada num determinado contexto paradigmático explanatório. É em relação a este tópico que Wittgenstein vai mais longe. Ele percebeu que para saber as razões de todas as coisas do universo, teríamos de saber em cada instante particular toda a estrutura microscópica do mundo inteiro, inclusive a nossa própria estrutura, mas isso é impossível. Acresce a isto, a limitação da linguagem.

Héliocoptero disse...

"Se a experiência religiosa tivesse algum peso, teria de dar a uma pessoa nascida numa cultura cristã, por exemplo, uma experiência que a fizesse tornar-se politeísta, por exemplo. Mas isso nunca ou raramente acontece..."

A maioria dos neopagãos são oriundos de países ocidentais, ou seja, nascem e crescem numa cultura implicita ou explicitamente cristã. Tendo em conta que são pelo menos umas quantas centenas de milhares de pessoas - alguns dados apontam para cerca de um milhão - a mudança de uma crença monoteísta para uma politeísta não é uma raridade.

Dito isto, as tentativas de provar racionalmente uma crença parece-me um exercício inútil, embora interessante a nível intelectual. A crença religiosa sempre me pareceu ser algo da ordem do emocional, do sentimento, da paixão, logo do irracional. Fazer da fé uma questão de razão é um pouco como misturar alhos e bogalhos.

Anónimo disse...

Caro Desid�rio:
Gostei da "cegueira cognitiva". Dizia o meu av� que " quem n�o se sente n�o � filho de boa gente", e considero a sua reac�o proporcionada e justificada.
Mas gostaria de acrescentar o seguinte. Qualquer cego lhe dir� que quando n�o se tem o sentido da vis�o, a percep�o do real n�o � a mesma, e que h� um incont�vel n�mero de detalhes, nem sempre escamote�veis, que quem tem vista n�o enxerga porque est� demasiado distraido com a avassaladora quantidade de informa�o que nos entra pelos olhos. Por vezes tenho a sensa�o de que se passa o mesmo com o conhecimento e a persistente tentativa de racionalizar tudo em nosso redor.
Aqui h� tempos, o mel�mano Calado confidenciava � Bartolli que n�o tinha reconhecido a Casta Diva da Norma de Bellini que ela gravou de acordo com as nota�es originais do compositor. Mais, nem sequer tinha gostado. No entanto, se se perguntar a Calado se gosta da Norma, os euc�mios afirmativos decerto n�o ser�o poupados.
� este tipo de racionaliza�o do sentir que se estende at� ao plano est�tico ou � F� que recuso. Tenho para mim que um concerto se ouve, n�o se l� se sente, mesmo que n�o se entenda. Entre explicar a paix�o por uma mulher e racionalizar esse sentimento, a minha op�o � clara. Por isso n�o me custa admitir que haja quem abra�e a causa da f� nem vejo que da� venha mal de maior ao Mundo, a menos que a coisa derive para a teocracia, que afinal n�o � mais que a tentativa de tornar hegem�nica uma maneira de ver.
Quanto ao resto, mantenho. Sem a minha reforma de luxo ou voc� sem o seu ordenado, n�o estariamos aqui em ret�ricas cognitivas: estariamos a tratar do b�sico, tal como o fazem muitos milh�es neste momento e para quem, sim, esta conversa � nada mais que uma forma privilegiada de ocupa�o de tempos desocupados.

Cumprimentos.

Mariano

Fernando Dias disse...

Argumento moral:

Depois de Kant ter aperfeiçoado Aristóteles e Espinosa, em que ética e moral deixaram de ser a mesma coisa, é muito difícil falar de moral sem o restringir à forma como Kant o tratou. Ainda hoje é difícil pôr isto de pernas para o ar.

Desidério Murcho disse...

Caríssimo Mariano

Obrigado pela sua resposta. Mas ainda não me convenceu.

Começando pelo fim: parece-me irrelevante dizer que é porque temos as nossas necessidades básicas satisfeitas que podemos pensar e discutir amigavelmente estas matérias. O mesmo acontece com o melhor da vida: ler um livro, compor uma música, passar férias com a nossa família e filhos.

Quanto ao outro aspecto, o tipo de argumento "uma paixão por uma bela mulher não se explica, vive-se" parece-me uma confusão. Pois no caso religioso o verdadeiro paralelo seria o Mariano estar apaixonado profundamente por uma mulher que nunca viu, não sabe se existe, e à qual atribui propriedades especiais, como a omnipotência, etc. Parece-me que seria absurdo não procurar saber se tal mulher existe realmente ou se a sua paixão precisa de ser corrigida.

Há a ideia muito comum de que as paixões e emoções escapam à razão, mas isto parece-me uma confusão, pois baseia-se na ideia de que as emoções e as paixões são imunes a razões, o que é falso. Eu posso estar muito apaixonado por uma mulher, mas não é de modo algum irrelevante descobrir que ela me engana, se aproveita de mim, me despreza, etc. Tal descoberta, se formos emocionalmente adultos e equilibrados, é natural que tenha efeitos sobre as nossas emoções em relação a ela.

Desidério Murcho disse...

Caro F. Dias

Obrigado pelo seus comentários. Não é verdade que não haja bons modelos explicativos da experiência religiosa. Não sou um especialista na matéria, mas o livro de David Lewis-Williams, Mind in the Cave, parece-me uma explicação muitíssimo plausível, aplicando-se à arte e à religião.

A sua interpretação de Wittgenstein não me parece correcta, apesar de eu estar longe de ser um especialista nesse filósofo. Em qualquer caso, mesmo que esteja correcta, temos de ter razões independentes para pensar que tal coisa é verdade. E não parece haver tal coisa: nós explicamos imensas coisas adequadamente, como as órbitas dos planetas ou a digestão sem precisar de conhecer toda a estrutura microscópida do mundo inteiro. Todo o argumento de autoridade é falacioso se a autoridade invocada defende uma ideia com a qual outras autoridades da mesma área discordam.

Fernando Dias disse...

Obrigado Desidério. Concordo em fugir do argumento da autoridade. Wittgenstein serve apenas de exemplo para abreviar falatório e por Desidério perceber até onde ele quer chegar. Vou continuar a estudar e a ler o que me sugere.

O Deus dos deístas (tal como Voltaire) também é diferente do Deus dos teístas. Limitou-se a criar o mundo e foi-se embora. O Deus de Espinosa é a própria Natureza. Neste caso a omnisciência está nela. Deus é imanente ao mundo e as coisas individuais são modos ou modificações de Deus.

Para Espinosa o erro e o mal são a mesma coisa. São ausências ou privações ao nível do pensamento. Há livre-arbítrio, ou seja, liberdade e capacidade para nos transformarmos e vencer tanto a ignorância como as emoções e os desejos. Esta força é o “conatos”, que é a força para viver bem e com equanimidade, que em última instância é a força da vida e por conseguinte da própria Natureza.

Anónimo disse...

Caro Desidério :

Não acha que a essência das razões da paixão radica mais naquilo que se projecta no outro do que naquilo que de facto o outro é ?

Confesso-me agnóstico, mas pergunto-me se nas questões da Fé não se passará algo de "irracionalmente" semelhante !

E de mesma forma que as ropturas das paixões derivam de um conhecimento real do outro que vai para lá do que até então tinha sido simplesmente idealizado, não poderão as razões da Fé eximir-se a esse confronto pela simples razão de que ele nunca acontece ?

Tenho um amigo que há coisa de dois anos iniciou uma "relação" com uma senhora que conheceu num chat da net. A senhora é casada e ele nunca a viu, nem sequer em fotografia, nem sequer falou com ela atravês de um telefone. No entanto confessa que não se passa um dia que não pense nela, e deixou de contar o que sonha em seu redor. Que "racionalidade" há nisto ?! Estamos a falar de alguém desiquilibrado ?! Acha que lhe devia recomendar um clinico ?!


Saudações !

Anónimo disse...

"Uma confusão comum quando se fala de filosofia da religião é pensar-se que não definimos adequadamente o deus de que estamos a falar. Isso é falso."
Meu Caro Desidério, pelo menos neste artigo não foi falso. O Desidério andou sempre à volta da mesma ideia de Deus. E estranho que faça parte do grupo que considera que o Budismo é uma religião sem Deus.

Manuel Rocha disse...

Subscrevo o comentário anterior na medida em que me parece que a discussão que aqui decorre não se consegue libertar de um óbvio etnocentrismo cultural que nos formata os conceitos e o raciocinio deles, desde Deus ao absurdo.
A analogia entre a religião e apaixão, tb me parece curiosa. Valia a pena levava mais longe, MF.
Também para mim a racionalidade da Fé é um lugar deveras estranho. Senti particularmente isso quando há tempos dei por mim ouvindo o Professor Marcelo referindo-se aos segredos de Fátima. Como se "casa" um racionalista com a Fé ?!
Não sei responder. Concordo que é interessante, mas estou com o primeiro comentário: devemos andar todos pouco ocupados !!!

Unknown disse...

Esta questão dos milagres é interessante.
UmDeus omnipotente que governa todo o universo, não necessita de milagres. Se quer evitar que alguém morra de Sida, basta impedir que contraia a doença.
Na verdade o “milagre” é uma prova de que Deus perdeu o controle do mundo e que necessita de remediar as coisas desajeitadamente. É portanto um Deus que muda contingentemente de opinião e logo, não existe fora do tempo, mas dentro dele, uma vez que procura alterar o presente, provando assim que não conhece o futuro.
Como eu.
Mas se existe no tempo, quem criou o tempo?

Unknown disse...

Por outro lado, em relação ao livre arbítrio, se Deus é intemporal e portanto conhece o tempo todo (passado e futuro) já sabe o que irá acontecer e por isso o futuro não depende de nada do que nós façamos. Façamos “bem” ou façamos “mal”, Deus já sabe porque o determinou assim. Logo não há aqui espaço para o livre arbítrio.
Nem de Deus...se tem à sua frente um plano perfeito (foi gizado por ele), não se concebe que o altere, porque isso significava que não é omnisciente.
Se altera, é porque a alteração faz parte do plano. LOgo nem Deus tem livre arbítrio neste universo.

FV disse...

"Geralmente, o que está em causa é a existência ou não de uma qualquer entidade que seja omnipotente, omnisciente, criadora, pessoal e sumamente boa (ser pessoal significa que não é uma força da natureza, por exemplo)."

Eu penso que este Deus é absurdo para a maioria dos crentes, até
porque este determinismo destruiria uma das mais importantes bases da religião: a moral.

Embora seja fácil definir um deus qualquer e discutir a sua existência, a crença em deus afasta-se sempre muito do "Deus estipulado nos livros", está muito mais ligada a motivações pessoais.

É por isso frequente diferentes pessoas pertencentes à mesma religião contradizerem-se relativamente às características que acreditam que Deus possui. O que os une na religião não é Deus, mas sim a tradição e a cultura.

Apesar de não fazer sentido discutir a existência de um deus que à partida não se definiu, este é que é o "Deus real" em que a maioria das pessoas acreditam.
Rejeitariam qualquer lista definitiva das características de Deus, mas têm-no interiorizado de uma forma vaga.

Uma questão intelectualmente mais interessante do que a existência do "Deus perfeito" é a tese de que o universo como um todo é consciente e age com uma motivação ou tendência.

guida martins disse...

Caro Desidério

Peço-lhe desculpa por ter fugido um bocadinho ao tema do post no meu comentário anterior. Podia ter escolhido outra forma de dizer que gostei de o ler. Não precisava de ser com a provocaçãozinha aos anónimos. Para falar de deus podia ter dito que algumas mulheres (mesmo que não percebam nada de argumentos filosóficos) ficam bastante esclarecidas quando confrontadas, por exemplo, com o argumento 'costela de adão'. Tenho um argumento alternativo, mas para o explicar creio que me afastaria outra vez do tema :)

João Vasco disse...

Excelente artigo!

A parte sobre o livre arbítrio está mesmo esclarecedora. Já a tenho formulado publicamente em termos parecidos (mas nunca de forma tão clara e sucinta) e nunca encontrei um único crente que fosse capaz de refutar tal argumentação.

João Moedas Duarte disse...

Caro Perspectiva,

"A informação é uma grandeza imaterial que só pode ter uma causa intelectual não material."

Não, Não é! Nem faria o minimo sentido! Por mais retórica que use o que diz não tem sentido.

Do ponto de vista físico a informação pode ser vista como os graus de liberdade de um sistema, ou por outras palavras da sua entropia. A informação máxima que um sistema é conceptualmente equivalente à entropia máxima desse sistema. Apenas as unidades mudam. A primeira pode ser expressa em bits, e a segunda, a entropia termodinâmica,em unidades de energia dividida pela temperatura.

A informação joga lado a lado com a matéria e energia. Já em 1877 Ludwig Boltzmann utilizava a entropia para descrever a quantidade máxima de informação que um sistema podia ter. Apenas lhe não lhe chamava informação.

Este facto pode-lhe fazer confusão mas a verdade é que a informação e entropia tornam-se fenomenos dependentes quando se estuda os buracos negros. Quanta informação pode conter um buraco negro? Ou quando se estuda as particulas atómicas: quanta informação, ou entropia, pode conter um quark?

É perfeitamente absurdo demonstrar que Deus existe porque existe informação. Sem fazer ideia o que isso significa. É que até se pode um dia chegar à conclusão, baseando-nos nos estudos de entropia à escala do Universo, que o próprio Universo se comporta como um ser inteligente (o que parece pouco provavel). Mas daí até este facto estar de acordo com o Deus relatado na Bíblia vai um passo gigantesco, diria memso impossivel. Alías este nunca seria o Deus da Bíblia, caso contrário este livro de histórias e excelentes metáforas devia falar de gravidade, mecânica quântica, computação quântica, termodinâmica, espaço-tempo, tectónica, etc, etc, etc.

Cumprimentos Jónatas

Aconselho a leitura de:
Information in the Holographic Universe, de Jacob Bekenstein. Black Holes, Scientific American, Volume 17, Number 1, 2007.

Esta história não é nova. Aconselho tmbém a consulta dos estudo iniciados por John Wheeler (o responsavel pelo termo buraco negro), que vê precisamente o mundo como se fosse feito de informação e no qual a matéria e energia são meros acidentes cósmicos. A diferença é que este senhor é um grande físico e a sua definição de informação é completamente diferente da sua e não implica de forma alguma a existencia de um Deus Biblico. O senhor como não deve perceber o conceito deve estar a fazer alguma confusão.

É desonesto pegar neste conceito ao qual se chegou pela via da ciencia,
mudar o seu significado e daí concluir que isto prova a existencia de Deus.

João Moedas Duarte disse...

"A informação é uma grandeza imaterial (...)"

Também a velocidade ou a aceleração são grandezas imateriais, no sentdi que não são matéria nem energia, mas implicam a exitencia de matéria e energia. A informação joga da mesma forma com a matéria e a energia. Como é que agarra o apanha a velocidade?

Concluir que Deus existe porque existe informação é o memso que concluir que Deus existe porque existe velocidade ou aceleração.

É simplesmente absurdo.

Por outro lado um mineral quando se forma a partir de um magma, sendo que não existem dois minerais iguais, visto que têm sempre átomos de elementos que lhe são estranhos (impureza), forma-se contendo uma quantidade de informação que tem a ver com o arranjo dos seus átomos na rede cristalina. E ao contrário do que se pensa uma rede cristalina pode ser muito mais activa e dinâmica do que se pensa.

Ora, um mineral que se forma actualmente, por exemplo o gelo, ou o sal que percipita num lago, que mão inteligente têm por detrás. Não é preciso nenhum Deus Biblico para formar as estruturas cristalinas que são geradas diariamente, nem nenhum homem, nem nenhum ser inteligente. No entanto estas estruturas têm uma quantidade enorme de informação.

Terra Que Gira disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
João Moedas Duarte disse...

Caro Desidério,

Deliciei-me com estes dois posts. Penso que estão realmente muito bons e muito bem escritos.

Que venham muitos mais.

Cumprimentos

João Carlos disse...

O «nosso» perspectiva está de facto muito bem «informado»! Dá vontade de rir. Acha que quem recorre a provas científicas, verdadeiramente científicas, está a agir com emocionalismo, a não ter sentido e a não ter fundamento? O criacionismo, esse, age de facto com a emoção e não com a razão. Neste caso emoção fundada em dogmas. Foi o que eu expliquei. Acha que António Damásio que explicou a emoção do ponto de vista da razão age com a emoção? Acha que as provas científicas que demonstrou são emoção? Os criacionistas, como o perspectiva, esses sim, agem com a emoção porque partem da sua visão dos factos, tal como querem e desejam que eles ocorram para chegar a uma conclusão, obviamente falsa, e não da visão objectiva, tal como os factos ocorrem e não como desejaríamos que pudessem ocorrer, para tirar conclusões e isso é que é ciência porque confirma o mundo tal como ele ocorre. Acha que os aviões podem voar por vontade de Deus revelada na bíblia?! Acha você que isso tem algum fundamento? E no entanto, os físicos, não acreditando na bíblia mas sim no que os factos tal como ocorrem na natureza lhes dizem, puseram os aviões a voar. Acha que isso não tem fundamento, nem sentido? É claro que o que vem escrito na bíblia não pode estar de acordo, muitas vezes com o que a biologia conclui, a física outra ciência qualquer, porque são dogmas. Parece-me a mim, que os criacionistas estão a sofrer um processo de negação da realidade e por aí inicia-se, por vezes, a condução ao fanatismo. Foi o que já expliquei. O criacionismo é um embuste que utiliza a ciência para se explicar. Obviamente que quem percebe de ciência não se deixa enrolar em embustes deste género, mas é demasiado fácil, para quem não tem grandes conhecimentos de ciência, deixar-se levar por estes embustes, que estão realmente bem concebidos. Qualquer um, que saiba minimamente de ciência, e com uma adoração a dogmas, pega na bíblia, no Alcorão, na Tora, ou outro manuscrito religioso qualquer, e inventa uma «verdade suprema», alegadamente com autoridade científica que tudo exlica. Como já disse, isso é fácil de fazer, só que não prova nada, porque são dogmas e nada mais que isso. Por isso, vocês sim, partem verdadeiramente da emoção para chegar a uma falsa razão. Por isso, aconselho o perspectiva a ir divagar os seus «testamentos» para outro lugar, porque aqui, dos que sabem do que falam, não engolem o criacionismo. Não insista porque não vale a pena.

alfredo dinis disse...

Caro Desidério
Obrigado por nos apresentares resumida e criticamente os chamados argumentos em favor da existência de Deus. Tais argumentos são um património cultural, mas hoje não desempenham qualquer função na compreensão da crença religiosa. Em todo o caso parece-me útil clarificar alguns aspectos desta discussão que são relevantes para uma compreensão actualizada da experiência religiosa.

1. Diversas pessoas em diversas culturas podem ter experiências religiosas de deuses muito diferentes. Isto não implica que não exista um deus, mas sim que essa realidade a que chamamos deus é apreendida de formas diversas, muito dependentes da cultura. Em todo o caso, há pessoas que nasceram numa cultura e foram educadas numa religião e que mais tarde abandonam essa religião ou mudam para outra, pelo menos nalguns casos em virtude de alguma reflexão e análise crítica de elementos inaceitáveis da religião que é abandonada. Isto significa que embora não seja possível provar racionalmente a existência de um deus, nem a sua não-existência, é possível fazer alguma análise crítica do conteúdo das crenças e das experiências religiosas.

2. Uma experiência religiosa não tem que incluir necessariamente grandes sentimentos de união com o universo, visões, sensação de estar fora do espaço e do tempo, etc. Uma série considerável de livros de crítica acérrima da religião que têm sido publicados nos últimos anos, sobretudo no campo da chamada neuroteologia, cometem o erro de considerar como elementos nucleares de uma religião estes elementos. A intencionalidade humana é que dá sentido a uma acção como a meditação, e é neste nível de intencionalidade que se pode verificar um ‘diálogo de intencionalidades’, a de deus e a do ser humano. Para que isto aconteça é necessária a correlativa actividade neuronal, mas ela não é só por si a causa do que acontece.

3. Com efeito, muitos autores cometem o erro de confundirem causação com correlação, como muito bem afirma Michael Gazzaniga no seu livro The Ethical Brain. O facto de durante uma meditação algumas áreas do cérebro estarem mais activas do que outras significa apenas que para uma pessoa realizar a acção de meditar necessita de um cérebro que funcione. Mas isso aplica-se a todas as demais acções. O facto de eu agora estar a escrever estas reflexões exige que algumas áreas do meu cérebro estejam activas, mas não é essa activação cerebral que, só por si, causa esta reflexão. A actividade cerebral, só por si, não causa efeitos semânticos.

4. No que se refere à ideia de deus, a sua definição não é tão fácil como parece. Daniel Dennett em Breaking the Spell dedicou a este assunto um número considerável de páginas onde creio que fez uma análise interessante desta questão. Além disso, em algumas religiões a ideia de Deus tem evoluído com a própria evolução cultural. E não poderia ser de outra forma. É através de esquemas mentais e categorias linguísticas e outras que o conhecimento humano se torna possível. Por exemplo, na teologia católica há autores que admitem a possibilidade de Deus de facto não ser nem omnipotente sem omnisciente, contrariamente a toda uma tradição.


5. Um grande número de críticas ao cristianismo, entre outras religiões, baseia-se na supostamente nuclear crença na existência de uma alma espiritual e imortal. Mas esta é uma crença filosófica e não religiosa. O então (1979) teólogo Joseph Ratzinger, na sua obra Introdução ao Cristianismo afirma que numa linguagem substancialista se fala de ‘ter uma alma’, mas numa linguagem mais actualizada, esta expressão exprime-se numa outra: ‘ser objecto de uma especial relação amorosa de Deus’. O que dá imortalidade ao ser humano não é uma suposta alma imortal mas uma relação imortal de um deus imortal que assegura a imortalidade daqueles a quem ama.

Pelas reflexões que acabo de fazer, compreenderás facilmente, meu caro Desiderio, que me revejo muito pouco nas actuais críticas feitas a uma religião (ou a várias) e a um deus (ou a vários) com as/os quais não me identifico. Gostaria que uma boa crítica ao cristianismo – ao essencial do cristianismo e não tanto ao acessório – fosse periodicamente feita pelos não cristãos. Uma boa crítica é certamente uma crítica informada e que resista ao argumento do espantalho, coisa a que não resistiram grandes autores como Daniel Dennett em Breaking the Spell e Richard Dawkins, especialmente no seu recente livro, The God Delusion, o qual foi para mim uma verdadeira desilusão. Contrariamente ao que se pensa, a religião, falo pelo cristianismo, só terá a ganhar com boas críticas, de outra forma definhará, tornar-se-á irrelevante ou enveredará por caminhos sem saída como o do fanatismo e da superstição.

Desidério Murcho disse...

Caro Alfredo

Muito obrigado pelo teu interessante comentário. Eis algumas respostas, que não esgotam todo o teu comentário.

“Tais argumentos são um património cultural, mas hoje não desempenham qualquer função na compreensão da crença religiosa.”

Há aqui recorrentemente uma confusão que este comentário permite esclarecer. Os argumentos a favor da existência de Deus não têm por objectivo compreender a crença religiosa. Muitos comentadores deste blog fazem precisamente esta confusão. O que os argumentos visam é justificar a crença na existência de Deus, e não compreendê-la. Trata-se de saber se há justificação para acreditar que um certo deus existe, e não de compreender o que leva as pessoas a crer num ou noutro deus. O que as leva a crer num ou noutro deus pode ser uma infinidade de coisas, a maior parte das quais são contextuais, culturais, psicológicas. O que queremos saber, contudo, é se existe este ou aquele deus, e não o que leva as pessoas a crer que tal deus existe.

“Diversas pessoas em diversas culturas podem ter experiências religiosas de deuses muito diferentes. Isto não implica que não exista um deus, mas sim que essa realidade a que chamamos deus é apreendida de formas diversas”

Ter experiências religiosas diferentes não implica nem que não existe um dado deus nem que existe. É por isso mesmo que o argumento a favor da existência de Deus com base na experiência religiosa é muito difícil de ser montado. Temos primeiro de já admitir que Deus existe para podermos dizer como dizes que o mesmo deus permite diferentes experiências.
O importante é que se só temos diferentes experiências religiosas, e se não tivermos outras razões para pensar que deus existe, então tais experiências não são suficientes para pensar que a existência de Deus é mais provável do que improvável.

“embora não seja possível provar racionalmente a existência de um deus, nem a sua não-existência, é possível fazer alguma análise crítica do conteúdo das crenças e das experiências religiosas.”

Parece-me muito difícil provar que não é possível “provar racionalmente a existência de um deus, nem a sua não existência”. Na verdade, acho que isso é mais difícil do que tentar provar que Deus existe ou que não existe. Parece-me uma ilusão popular pensar como pensa. Mas parece-me uma ilusão porque para provar tal coisa seria necessário provar primeiro que todos os argumentos falham, e que além de falharem se equilibram — pois caso se limitem a provar, isso significaria que não temos razões para pensar que Deus existe. Kant, é claro, tentou fazer isso mesmo, mas poucos filósofos hoje aceitariam que os seus argumentos nesta matéria são definitivos. (Por coincidência ainda ontem falava disto mesmo com o Richard Swinburne, que me dizia achar bizarra a ideia de que os argumentos de Kant funcionam, pois são muito mais frágeis do que qualquer das provas tradicionais a favor de Deus.)

“A intencionalidade humana é que dá sentido a uma acção como a meditação, e é neste nível de intencionalidade que se pode verificar um ‘diálogo de intencionalidades’, a de deus e a do ser humano.”

Só que a questão é saber se tal diálogo é real ou ilusório. Afinal, muitos loucos “falam” com Napoleão. A questão é saber se do facto de as pessoas terem a sensação de ter um diálogo com um deus, se têm de facto um diálogo real, ou se pelo contrário sofrem de uma mera ilusão.

“O facto de durante uma meditação algumas áreas do cérebro estarem mais activas do que outras significa apenas que para uma pessoa realizar a acção de meditar necessita de um cérebro que funcione. Mas isso aplica-se a todas as demais acções.”

Claro, mas a questão é que a actividade cerebral tanto pode ter como causa a realidade como ser auto-induzida e como tal ilusória. Sonhar com Napoleão é muito diferente de ver Napoleão, mas em ambos os casos algo no cérebro se “acende”.

“No que se refere à ideia de deus, a sua definição não é tão fácil como parece. Daniel Dennett em Breaking the Spell dedicou a este assunto um número considerável de páginas onde creio que fez uma análise interessante desta questão.”

Não, para sabermos como se define o deus teísta, Dennett é um non-starter. Qualquer boa introdução à filosofia da religião faz isso bem, e terá as referências bibliográfica correctas. Dennett não está minimamente interessado em ler a bibliografia da área.

“Uma boa crítica é certamente uma crítica informada e que resista ao argumento do espantalho, coisa a que não resistiram grandes autores como Daniel Dennett em Breaking the Spell e Richard Dawkins, especialmente no seu recente livro, The God Delusion, o qual foi para mim uma verdadeira desilusão. Contrariamente ao que se pensa, a religião, falo pelo cristianismo, só terá a ganhar com boas críticas, de outra forma definhará, tornar-se-á irrelevante ou enveredará por caminhos sem saída como o do fanatismo e da superstição.”

O livro de Dawkins é um disparate sem sentido. O de Dennett não tanto, mas é fundamentalmente uma review da bibliografia publicada na área. O alvo de Dawkins não é o cristianismo cerebralizado das elites, mas o cristianismo puro e duro tal como é vivido pelas pessoas comuns. Concordo inteiramente que a religião só tem a ganhar com a crítica, e por isso mesmo os livros de Dawkins e Dennett, apesar de muito menos interessantes do que outros de autores menos famosos (como o Michael Martin ou o Rowe), são muito importantes.

Ricardo disse...

Tenho uma pequena objecção que não tem haver directamente com o tema aqui discutido.

"a ideia é que sem um Deus que castiga e recompensa, não há realmente razões para agir moralmente. É esta a ideia de Dostoiévski. Esta ideia revela uma imensa incapacidade para compreender o pensamento ético"

""Se Deus não existe, tudo é permitido" é uma frase de Fiódor Dostoiévski (do romance Os Irmãos Karamazov) que muitas pessoas conhecem."

Não faz muito sentido atribuir estas ideias a Dostoiévski sendo elas apenas convicções de personagens do livro.
Consta que Dostoiévski era muito religioso mas daí passar estas como ideias do autor é dar um salto grande.

Desidério Murcho disse...

Caro Ricardo

Obrigado pela correcção, tem toda a razão: não se pode inferir que o autor concorda com o personagem, seria ridículo.

Contudo, aposto que neste caso o autor concorda mesmo com o personagem, precisamente porque era religioso -- popularmente, muitas pessoas religiosas sem formação tendem a pensar que Deus existe e que por isso nem tudo é permitido, mas que se Deus não existisse, tudo seria permitido.

Daniel de Sá disse...

O Desidério chega a aparentes conclusões quando, afinal, se limita a partir de prejuízos. Ou de um único prejuízo, aliás, o de que Deus não existe. Ora essas conclusões só serão válidas se o prejuízo, tomado como axioma, for válido.
Vejamos a que corresponde a formulação silogística de um ou dois exemplos. Pode ser a experiência mística e os milagres.
1:
a) Deus não existe;
b) A experiência mística só seria possível se existisse Deus;
c) Portanto, a experiência mística não existe.
2:
a) Deus não existe;
b) Os milagres só poderiam ser resultado da intervenção de Deus;
c) Portanto, os milagres não existem.
Claro que é óbvio também que, se Deus não existe, Ele não passa de uma criação da mente humana.
Quanto ao do mal como prova da não omnipotência de Deus, e, em último caso, da sua não existência.
Há tendência para considerar Deus como um ente com poder arbitrário, não sujeito a nenhuma lei. Ora, parafraseando Protágoras, Deus será para Si mesmo a medida de todas as coisas. Mas Ele não resolve fazer isto e aquilo conforme lhe dá na “divina gana”, mas conforme esse “isto” e esse “aquilo” se fariam a si mesmos se tal fosse possível. Os homens são como são por uma livre escolha de serem assim. A maldade e a bondade não têm que ver com o facto de Deus nos ter feito bons ou maus. Somos bons ou maus por uma opção livre. De certo modo, fizemo-nos a nós mesmos. Não se trata do melhor dos mundos possível, como diria Leibniz, mas do mundo que, de algum modo, nós fizemos.
O conhecimento que Deus possa ter do futuro não condiciona esse futuro. Não é como um comentador aqui disse, que, se Deus sabe o futuro, então este não pode ser de outro modo. Se nós revemos um filme, claro que já sabemos o que vai acontecer. Mas esse acontecer de um modo determinado não depende do nosso conhecimento, mas do guião que alguém escreveu para o filme. E Deus, se sabe o futuro, não influi nele. A não ser que se acredite em milagres...

Desidério Murcho disse...

Olá, Daniel!

Obrigado pelo comentário. Aqui estão algumas respostas.

1) Só pretendi dar uma ideia do início da discussão. Não pretendi apresentar a palavra final. Quem pensa que o argumento dos milagres funciona terá de responder às objecções apresentadas, para começar (e a outras). O objectivo é só mostrar ao leitor que é preciso responder a estes contra-argumentos óbvios, e não que estes refutam definitivamente o argumento original.

2) As conclusões não podem ser válidas ou inválidas, podem ser verdadeiras ou falsas. São os argumentos que são válidos ou inválidos, e não as suas premissas e conclusões.

3) O contra-argumento dos milagres é que pressupõe que a única explicação plausível para os milagres é a existência de um deus, mas isso é falso. E compete ao argumento mostrar que dados os milagres, a existência de um deus é a explicação mais provável. Pode ter-lhe dado a sensação que este contra-argumento pressupõe que Deus não existe, mas isso é falso. Como eu disse, até mesmo pessoas que aceitam que Deus existe aceitam que o argumento não funciona, só por si. Infelizmente, contudo, as pessoas sem uma boa preparação filosófica tendem a aceitar qualquer argumento a favor das conclusões que aceitam. Isto é um disparate do tamanho do mundo. Eu, e você, acreditamos que a neve é branca, mas não aceitamos que um bom argumento a favor desta crença é que os extraterrestres a pintaram de branco. Um argumento, para ser cogente, tem de ser aceitável para quem *não* aceita a conclusão. Você não me pode pedir para começar por aceitar Deus, e partindo daí analisar o argumento dos milagres. Para você ter um bom argumento dos milagres, esse argumento tem de ser aceitável para quem *não* aceita a sua conclusão. É assim que a argumentação funciona. E é por isso mesmo que é muito difícil ter bons argumentos.

4) A questão do mal também me parece inadequadamente tratada no seu comentário. O problema é saber justificar o mal natural. O seu comentário nada diz sobre isso. Mas mesmo a ideia de que somos livres, inteiramente, não é com certeza incompatível com ser uma boa pessoa. Afinal, há imensas pessoas que são boas pessoas. Elas não são menos livres do que as outras. Então, por que razão há tantas pessoas que não são boas? Não é por serem livres, dado que as outras também são livres.

5) Quanto à compatibilidade entre a presciência de Deus e o livre-arbítrio, a solução simples é que "omnisciente" não significas inqualificadamente saber tudo, mas antes saber tudo o que pode ser sabido. Por exemplo, Deus não pode saber que 2 + 2 = 5 porque 2 mais dois não é 5. Analogamente, Deus não pode saber o que vou fazer amanhã porque eu sou livre. Mas há outras soluções engenhosas, nomeadamente avançadas na idade média, que envolve a distinção técnica entre de re e de dicto, distinção que só no séc. XX, na sequência dos trabalhos de Kripke e outros filósofos, foi reactivada.

Espero que estas notas sejam esclarecedoras.

Daniel de Sá disse...

Meu Caro Desidério
Foi essa explicação que faltou no artigo. Sob esse ponto, ou pontos, de vista estamos de acordo.

Joao Marcos disse...

Ao que consta, a tal "bem conhecida" frase de Dostoiévski não pode ser atribuída nem ao autor nem ao personagem Ivan Karamazov. Veja aqui.
Por outro lado, Ivan de fato disse que "se não há imortalidade, não há virtude", mas não me parece que isto seja de grande valia neste caso.

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