quarta-feira, 5 de setembro de 2007

A CIÊNCIA COMO CULTURA


O título evoca automaticamente um outro título mais famoso: "As Duas Culturas", a conferência que Charles P. Snow, químico e romancista inglês, proferiu em Cambridge em 1959 e que mais tarde passou a livro (publicado entre nós pela Presença em 1995). Nessa conferência, Snow chamou a atenção para a dicotomia entre a cultura humanística e a cultura científica, enfatizando o desconhecimento e, por vezes, o menosprezo desta última. Ouçamo-lo:

"Como acontece a quem tem falta de ouvido, os não cientistas não sabem o que perdem. Soltam uma exclamação de dó ao ouvirem falar de cientistas que nunca leram uma grande obra de literatura inglesa. Desprezam-nos considerando-os especialistas ignorantes. Mas a sua própria ignorância e o seu próprio grau de especialização são também alarmantes. Estive muitas vezes em reuniões de pessoas que, pelos critérios da cultura tradicional, eram altamente instruídas e que expressavam com uma complacência notável a sua incredibilidade relativamente à ignorância dos cientistas. Numa ou duas ocasiões semelhantes, senti-me provocado e perguntei aos circunstantes quantos de entre eles saberiam dizer o que era a Segunda Lei da Termodinâmica. A resposta era fria. E negativa, também. Mas o que eu estava a perguntar equivalia, do ponto de vista científico, a esta outra pergunta: leu alguma coisa de Shakespeare?".

E ouçamo-lo mais:

"Hoje penso que, mesmo que tivesse feito uma pergunta ainda mais simples. como, por exemplo: o que entende você por massa, ou por aceleração? - que equivale, em termos científicos, à pergunta: sabe ler? - só uma em cada dez dessas pessoas altamente instruídas compreenderia o meu inglês."

Esta questão das "duas culturas" tem durado até aos dias de hoje. Para a resolver, há quem tenha proposto uma mescla das duas culturas tradicionais, a chamada "terceira cultura". Julgo que é uma maneira pouco hábil de resolver a questão. O que se tem de fazer é mostrar que a cultura - um conceito difícil de definir, mas que pode ser entendido como "a actividade e desenvolvimento intelectuais, saber, ilustração, instrução" (do "Dicionário Aurélio") - é única e, embora naturalmente polifacetada, difícil de dividir. A ciência é uma forma de cultura que coexiste com outras. Apesar de ser distinta delas - não há dúvida de que a actividade científica difere, por exemplo, da actividade artística - comunga com elas certos valores como a criatividade, o apuro e a elegância. Também partilha a ideia de que o sucesso depende do reconhecimento por uma comunidade. E tanto a ciência como a arte estão relacionadas com civilização. Associamos cultura com civilização de modo que tanto a Segunda Lei da Termodinâmica como o teatro de Shakespeare são expressões maiores de civilização. Se o leitor, por acaso, não conhece a Segunda Lei, não sabe o que perde; e a mesma coisa se nunca ouviu falar de Hamlet ou de Romeu e Julieta.

Contudo, a falta de cultura científica é um fenómeno bem conhecido no seio da nossa civilização, cujos desenvolvimentos mais recentes se devem precisamente à ciência. Normalmente, a falta de cultura científica está relacionada com a falta de cultura "tout court". Em Portugal, país dominado por uma "velha cultura" que ignora a ciência, essa falta é particularmente nítida. Não há ainda uma cultura científica generalizada e enraizada, mas também a cultura "tout court" não é um bem abundante e equidistribuído. Se se perguntasse a um português médio o que diz a Segunda Lei da Termodinâmica, bem poderíamos temer o resultado... E quanto a Shakespeare os resultados pouco difeririam. Vejamos antes, como ilustração da nossa falta de cultura, algumas questões científicas muito simples, referindo a percentagem de portugueses que, numa amostra inquirida em 1996 pelo Observatório das Ciências e Tecnologias, não sabe dar as respostas correctas:

- Quanto tempo leva a Terra a dar uma volta ao Sol? 49%.
- Os seres humanos desenvolveram-se a partir das primeiras espécies animais? 50%.
- Os electrões são mais pequenos do que os átomos? 68%.
- Os antibióticos destroem os vírus e as bactérias? 80%.

(Respostas: a Terra demora um ano ou 365 dias a dar uma volta em torno do Sol; os seres humanos desenvolveram-se a partir de espécies mais primitivas; os electrões são mais pequenos do que os átomos; e os antibióticos só destroem as bactérias).

Os números são maus em absoluto, mas são também maus de um ponto de vista relativo, quando nos comparamos com outros países europeus (Portugal surgia no fundo da tabela!). Concluiu em 1998 o "Relatório do Observatório das Ciências e das Tecnologias", um organismo que entretanto foi integrado noutro (e os inquéritos interrompidos, julgo):

"Globalmente, e comparando com os dados europeus, observa-se um défice na cultura científica da população portuguesa, que apresenta os mais baixos resultados em quase todos os indicadores, défice associado a um problema de oportunidades".

Forçoso é concluir da necessidade de incrementar a nossa cultura científica, tanto através da escola como por outros meios. Convém notar que a cultura científica não consiste apenas na interiorização de um conjunto de factos apurados pela ciência, mas também no método que permite alcançar esses conhecimentos. Aliás, o domínio do método científico revela-se, em geral, muito útil na vida quotidiana.

Várias estratégias podem ser seguidas em Portugal ou no mundo para mostrar a quem ainda o não saiba que a ciência é uma forma de cultura. Por exemplo, aquelas pessoas que reconhecem o valor da cultura artística (englobando nesta as artes visuais, a música, a literatura, etc.) talvez possam beneficiar se ouvirem falar das várias pontes entre a arte e a ciência. As duas exigem imaginação (a imaginação na ciência está contida numa camisa de forças, na feliz metáfora de Feynman). Ambas exigem apuramento técnico (a ciência assenta, em grande medida, em protocolos experimentais precisos). E ambas se orientam por um ideal estético (sim, a busca da "harmonia do mundo" é também empreendida pelos físicos!).

A ciência e a arte, apesar de diferentes, estão ligadas, estão tão ligadas que o maior dos físicos, Albert Einstein, que gostava muito de tocar violino, declarou um dia:

"Se eu não fosse físico, seria provavelmente músico... Penso muitas vezes ouvindo música. Sonho acordado com a música... Obtenho o maior prazer da vida a partir da música".

7 comentários:

Anónimo disse...

Que belo texto! Apreciei bastante o tema e a forma como foi conduzido ao longo do texto.

Enquanto aluno de Engenharia Química que gosta de escrever e de literatura, sou confrontado por vezes com a ideia de que ou se gosta de uma coisa ou de outra, daí o meu apreciar deste texto.

Saudações,
Marcelo Melo
[www.3vial.blogspot.com]

Anónimo disse...

as formulas são a arte de passar a realidade concreta para uma linguagem que só o ser humano compreende, aliás foi inventada por ele :)

Anónimo disse...

Também achei muito interessante este post, mas acho que há nele uma afirmação que merece ser desenvolvida:

«Normalmente, a falta de cultura científica está associada à falta de cultura "tout court". Em Portugal, país dominado por uma "velha cultura" que ignora a ciência, essa falta é particularmente nítida.»

Esta afirmação, que necessitaria de algum desenvolvimento acerca do que se entende por «velha cultura», vai, ainda assim, ao encontro dumas ideias que, ainda hoje, defendi noutro local (se bem que a propósito dum tema que aqui não foi aflorado), e que me parece pertinente retomar, sem pedir desculpa por poderem parecer um tanto ou quanto «radicais» (afinal, não serei a única :-)):

«Gostava sinceramente de perceber por que razão tantas pessoas em Portugal temem assim tanto os comunistas [e eu a posteriori acrescentaria os ateístas ou agnósticos], e não temem pelos vistos os OGM! Atavismos, não? Incongruências... (...)
No país das fracturas ideológicas e religiosas estou em crer que pagamos caro a factura de tanto fracturarmos «preventivamente» (é, aliás, a estratégia dos cobardes: «vamos lá a encharcar isto de lixívia, não vá uma bactéria morder-me!»). Pagamos esta factura com falta de ideias (ou ideias requentadas / só feitas de slogans), conhecimento adormecido, desenvolvimento insustentável, desactualizado ou mesmo perigoso. Quando as coisas supostamente boas surgem, «já eram» noutros lugares.»
Adelaide Chichorro Ferreira

Luis Correia disse...

"(Respostas: a Terra demora um ano ou 365 dias a dar uma volta em torno do Sol; ..."

Correcção: a Terra demora um ano ou quase 365 dias e 1/4 em volta do Sol. Por isso é que existem anos bissextos de 4 em 4 anos, excepto de 100 em 100, excepto de 400 em 400. Mesmo assim de vez em quando é necessária a adição de um segundo de correcção de acordo com as observações astronómicas, mas isso já é preciosismo a mais.

De resto um bom artigo sobre a cultura científica ou mais precisamente a falta dela.

Anónimo disse...

"A ciência e a arte, apesar de diferentes, estão ligadas, estão tão ligadas que o maior dos físicos, Albert Einstein, que gostava muito de tocar violino, declarou um dia"

Esta frase é um hino à estupidez. Primeiro, o título de "maior dos físicos" é completamente descabido. Não há nenhuma régua para medir a grandeza dos físicos, nem faz sentido que a procuremos. Os físicos não são comparáveis. Por outro lado, o argumento "se o maior dos físicos gostava de música, então as duas culturas de que falava Snow estão muito, mas muito ligadas" é completamente ridículo. Newton dedicou boa parte da sua vida à Alquimia. Bohr era religioso e gostava de futebol. O que isso mostra? Nada. É obvio. Todos os físicos poderiam adorar música que nem mesmo isso seria sinal de qualquer ligação entre as duas culturas.

O resto do Post alinha pelo mesmo diapasão. A estética aparece como sinónimo de harmonia. A imaginação (uma das mais importantes faculdades kantianas) aparece como algo que a ciência tem de ter como amarrada. A tese do Snow é deturpada ao ponto de se esgotar na questão do menosprezo da cultura científica. Um completo horror.

Depois de ler este post fico vez convencido da razão do Snow.

Anónimo disse...

Caro Carlos:

Tem algumas gralhas pouco importantes no texto:

Mas o que eu estava a perguntar equivalia, do ponto de vista científico, a esta outra perguntas pergunta

Os seres humanios desenvolveram-se a partir das primeiras espécies animais? humanos

(a imaginação na ciència está contida numa camisa de forças ciência
Se eu não fosse físico, seria preovavelmente músico provavelmente

De resto, gostei do texto. Sobre os relatórios de literacia em Portugal lembrava-me de ver qualquer coisa no blog sobre isso. Pesquisei em literacia e descobri logo (obrigado pela pesquisa que incluiram no blog, mas não seria altura de repensarem os tags?)

Continuam, fazem parte do projecto PISA. Os posts são

Literacia científica

Literacia científica: à procura do arco-íris

Anónimo disse...

Penso que para se ser um virtuoso em violino é preciso mais do que arte: muita técnica, muita disciplina mental, muita capacidade para se ler(com extrema rapidez, e à primeira vista) uma linguagem complexa como a da música (porventura tão complexa como a da matemática?). A disciplina e determinação para se chegar lá pode ser a mesma que na ciência, mas o resto é, parece-me, bastante diferente. Aprender música a sério (num Conservatório) ajuda, a meu ver, a disciplinar a mente e a autonomizar o indivíduo pensante, e isso são aspectos essenciais da actividade científica. Não creio que se deva encarar o ensino artístico apenas como privilégio daqueles que, mais tarde, querem ser artistas. Nem acho que toda a arte deva ser vista, necessariamente, como «harmonia», se bem que, numa orquestra, seja essencial a coordenação às milésimas de segundo com todos os outros intérpretes, o que também pode ser descrito como «harmonia» (mas a arte não serve apenas para dispor bem, ou como ingrediente decorativo nas nossas vidas: a coisa é bem mais complicada, e difícil de explicar!). O ensino da música (como o das línguas) faz muito bem aos outros, também, que nunca serão virtuosos artistas, e que não deviam ser excluídos da possibilidade de acederem a esse conhecimento. É confrangedor que se corte tanto no número de vagas para aprender música, no Conservatório...! As horas passadas por um aluno no Conservatório são depois compensadas em menos dinheiro pago pelas famílias a explicadores de matemática, e assim.
Adelaide Chichorro Ferreira

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