quarta-feira, 29 de agosto de 2007

Filosofia da química e atomismo


Apontamentos de Jöns Jakob Berzelius, o «pai» do atomismo químico, ou, como refere Alan Rocke*, «Se John Dalton foi o pai da teoria atómica, então Jacob Berzelius foi a parteira e o pai adoptivo, cumprindo talvez o papel mais importante no desenvolvimento do atomismo tanto químico como físico durante as segunda, terceira e quarta décadas do século XIX.»

«Todas as tentativas de aplicar métodos matemáticos no estudo de questões químicas é profundamente irracional e contrário ao espírito da química ... se a análise matemática alguma vez tiver um lugar proeminente em química - uma aberração que é felizmente quase impossível - daria lugar a uma rápida e generalizada degeneração desta ciência» Auguste Comte, Cours de Philosophie Positive, 1830.

Esta frase, que poderia constar da antologia de grandes erros do Carlos, ajudou-me a perceber, ainda enquanto aluna, a aparente contradição de em todas as minhas aulas de química, de química analítica a química orgânica passando por bioquímica, a constituição atómica da matéria ser apresentada como um dado adquirido para os químicos do século XIX, enquanto nas aulas de física me era reiterado peremptoriamente que a atomicidade e existência de moléculas só tinham sido estabelecidas sem sombra de dúvidas por Einstein no seu Annus Mirabilis.

Não parece existirem quaisquer dúvidas da existência de átomos na química desde pelo menos o início do século XIX, com o trabalho de Jakob Berzelius (que propôs igualmente o primeiro modelo de ligação química), e de moléculas desde que Amedeo Avogadro resolveu em 1811 os problemas apontados por Joseph Louis Gay-Lussac 6 anos antes, distinguindo átomos de agregados de átomos a que chamou moléculas. A hipótese de Avogadro estava de acordo com as observações de Gay-Lussac e implicava que as massas relativas das moléculas podiam ser determinadas sem ser necessário observar um átomo ou molécula individual. Em Setembro de 1860, Stanislao Cannizzaro distribuiu aos participantes no International Congress of Chemists em Karlsruhe o artigo famoso em que descrevia o seu novo sistema de determinação de pesos atómicos. Entre os presentes contava-se Dmitri Ivanovitch Mendeleev, um dos pais da tabela periódica, publicada no livro «Princípios da Química» em 1869 e igualmente desenvolvida, de forma independente, por Julius Lothar Meyer.

Dois anos antes da publicação dos «Princípios», August Kekulé, um químico orgânico proeminente que propôs a estrutura cíclica do benzeno em 1865, tinha escrito:

«Eu espero que consigamos um dia descobrir a explicação matemático-mecânica para aquilo a que chamamos agora átomos e que explique as suas propriedades».

Isto é, umas largas décadas antes de Einstein publicar o artigo «Acerca do movimento de pequenas partículas em suspensão num líquido como requerido pela teoria cinética-molecular do calor» e a sua tese de doutoramento «Uma nova determinação das dimensões moleculares», que vemos frequentemente descritos como os artigos fundamentais para o estabelecimento da Teoria Atómica e Molecular, os químicos não só não tinham dúvidas sobre a existência de átomos e moléculas como descreviam as estruturas tridimensionais destas últimas e aventavam os primeiros modelos de ligação química (isto é, entre átomos). De facto, ainda no século XIX, em 1874, o primeiro Nobel da Química, Jacobus Hendricus Van’t Hoff, resolveu o problema de Pasteur com a actividade óptica de sais de ácido tartárico (ácido 2,3-di-hidroxi-succínico), um constituinte das uvas. Achille Jacques Le Bel e Van’t Hoff, independentemente, explicaram porque dois isómeros ópticos rodavam o plano de polarização da luz em sentidos opostos propondo assimetria na estrutura molecular destas substâncias, nomeadamente propondo a existência de carbonos assimétricos, isto é, carbonos ligados a quatro grupos diferentes.

Sempre me intrigou esta ignorância do papel fundamental do atomismo na química, praticamente desde o seu nascimento como ciência, mas a observação de Comte e o parto tardio da química ajudam a explicar que se considere que a Teoria Atómica e Molecular só foi reconhecida (pela física) com os artigos de Einstein.

Embora a maioria dos historiadores de química tracem o seu nascimento à publicação em 1661 do The Sceptical Chemist, («O Químico Céptico»), de Robert Boyle, seguida cinco anos mais tarde por «A Origem das Formas e Qualidades», a realidade é que o estabelecimento da química como ciência foi um processo demorado e com recaídas. Muitos cientistas respeitados - como Johann Becher, Georg Ernst Stahl (o introdutor do flogisto que Lavoisier demonstrou inexistente) ou mesmo Isaac Newton - fizeram incursões mais ou menos abertas pela alquimia em pleno século XVIII. Como referi no post «O Fim da alquimia», as grandes «guerras» da química neste século tinham a ver com a demarcação da alquimia, considerada uma charlatanice pura e dura que impedia o progresso da verdadeira ciência, a química.

Isto é, a química estabeleceu-se depois de as «guerras» do atomismo terem sido travadas e os principais obstáculos – teológicos, experimentais e teóricos – terem sido ultrapassados pela física e pela filosofia. No início do século XVII, o atomismo era uma filosofia proscrita, uma explicação ateísta que ameaçava a visão escolástica do mundo e como tal era devidamente condenada (em França, por exemplo, o atomismo foi proibido em 1624 e a sua defesa era merecedora da pena de morte). No século XVIII a constituição atómica da matéria era já uma hipótese «conservadora» e a ciência, a filosofia e a religião começavam a dissociação que muitos hoje em dia contestam, pelo menos na parte que à religião diz respeito. Assim os químicos aderiram imediata e entusiasticamente à obra de Dalton publicada em 1808, «A New System of Chemical Philosophy».

Por outro lado, até ao século XX a química era encarada como a ciência quasi estritamente experimental que apenas se ocupava da natureza da matéria e, especialmente, das suas transformações. Isto é, ninguém imaginava origens filosóficas para o atomismo químico mas abundavam objecções filosóficas em relação ao atomismo físico. Nem alguém se referiria a um químico, como o fez Einstein em relação a Ernst Mach, um anti-atomista, como um bom cientista mas um filósofo deplorável. Provavelmente porque não há muitas lucubrações filosóficas a extrair de uma síntese química ou de uma purificação - excepto talvez para um Primo Levi - enquanto muitos grandes nomes da física e matemática se destacaram igualmente pelas suas reflexões filosóficas, é muito raro encontrar um químico-filósofo, pecha que continua (Ilya Prigogine ou Michael Polanyi são excepções) e se manifesta ainda na raridade de filósofos da química.

De facto, se olharmos para as publicações de filosofia das ciências descobrimos que se a física tem a parte de leão e a biologia, ciências cognitivas e afins começaram a merecer muita atenção nos últimos tempos, é preciso um esforço considerável para descobrir algo sobre filosofia da química. Isto é, dir-se-ia que a combinação química e filosofia é essencialmente não-ligante (ou mesmo anti-ligante), talvez porque a física consegue traçar as suas origens claramente à filosofia e a química, excluindo a alquimia, traça as suas origens à física.

Como refere este artigo que incide sobre a negligência na filosofia da química (formato pdf), ainda hoje muitos consideram a química apenas como uma pequenissima parte da física, a parte que se restringe à escala dos nanómetros e ao electromagnetismo, e como tal consideram que todas as questões filosóficas interessantes em química são cobertas na filosofia da física.

Na realidade, há sobreposição (e colaboração) das duas ciências em muitas áreas, nomeadamente no que os físicos chamam física-química e os químicos química-física, na física de estado sólido ou na termodinâmica (física ou química). Mas há não só áreas completamente distintas como abordagens diferentes ao mesmo problema, que se manifestam inclusive na forma como químicos e físicos enunciam, por exemplo, a segunda lei da Termodinâmica, para nós dirigida essencialmente ao equilíbrio químico. Assim, embora o post sobre o átomo e a liberdade de expressão tenha proporcionado uma discussão muito interessante, antes de continuar a história do atomismo gostaria de frisar que para a maioria dos químicos, desde que a química se estabeleceu como ciência, o atomismo é estritamente científico sem quaisquer implicações filosóficas - exceptuando, claro, aquelas que integrámos no método científico.

*Alan J. Rocke, Chemical Atomism in the Nineteenth Century – From Dalton to Cannizzaro, página 66, Ohio State University Press, 1984.

8 comentários:

Anónimo disse...

Em apoio, de leiga, ao que diz a Palmira, relembro que n'Os Maias (1888) a grande e definitiva obra que Ega se propõe escrever se intitularia "Memórias de um átomo" (e pela breve sinopse dessa obra nunca acabada, que Eça faz no cap. IV, o dito "átomo do Ega" parece mais físico do que químico).
É também uma achega ao post de baixo, do Carlos Fiolhais, sobre o "atraso cultural português"
Saudações
Marvl

Anónimo disse...

"Na realidade, há sobreposição (e colaboração) das duas ciências em muitas áreas, nomeadamente no que os físicos chamam física-química e os químicos química-física, na física de estado sólido ou na termodinâmica (física ou química). Mas há não só áreas completamente distintas como abordagens diferentes ao mesmo problema, que se manifestam inclusive na forma como químicos e físicos enunciam, por exemplo, a segunda lei da Termodinâmica, para nós dirigida essencialmente ao equilíbrio químico. Assim, embora o post sobre o átomo e a liberdade de expressão tenha proporcionado uma discussão muito interessante, antes de continuar a história do atomismo gostaria de frisar que para a maioria dos químicos, desde que a química se estabeleceu como ciência, o atomismo é estritamente científico sem quaisquer implicações filosóficas - exceptuando, claro, aquelas que integrámos no método científico."

Não posso senão estar de total acordo consigo. A tese reducionista sempre viveu dentro da física. Isto é, que todas as ciências, em última análise, se resumem à fisica e à matemática. Se alguns casos é díficil de imaginar, na química, principalmente após a segunda quântica, é quase evidente. Dirac foi um dos grandes defensores desta visão, ficando celebre a sua frase: ``the underlying physical laws necessary for the mathematical theory of ... the whole of chemistry are thus completely known, and the difficulty is only that the exact application of these laws leads to equations much too complicated to be soluble.''.

Os químicos têm vindo a resolver o problema utizando a equação de S. de um modo que causa arrepios à maioria dos físicos. O que tem ainda reforçado mais a ideia que a Química não é mais do que física aplicada. Deste modo, não existem grandes "questões filosóficas" na Química, como não há algo como Filosofia da Química.
Contudo, nos últimos anos (10/15) tem havido várias reacções a esta tese. Por um lado, tanto a metodologia, como a abordagem é diferente. Por outro, não assim tão claro que a totalidade da Química se possa reduzir, mesmo em tese, à Física. Deste modo, há quem venha defendendo que existe uma Filosofia da Química. Creio que a maioria dos filosofos da ciência não dão grande crédito a esta tese. O debate está aberto e tem tido alguma vida.

Seja como for, em boa verdade, aquilo que são os "grandes problemas filosóficos" da Física - ou que surgem na Física - não têm reprodução directa na Química. Mal ou bem, os químicos estão preocupados em fazer útil aquilo que surge da Física. Porém, em boa verdade, a grande maioria dos físicos também não estão nada preocupados com as implicações filosóficas. Para eles, aliás, isso das implicações filosóficas é pouco mais do que conversa de treta. Veja aqui o caso do Fiolhais, que dá por certo o que é altamente problemático, que dá por dado o que é uma construção, passa a correr pelos locais onde a Filosofia da Ciência mora. Isto não deixa, como é obvio, de ser uma posição filosófica em si. Posição essa que é não nada fácil de sustentar quando se lida com a Fisica fundamental, mas que parece ser a correcta quando apenas se pretende fazer contas e aplicar as leis. Logo, não admira nada que os Químicos abordem o atomismo no seu sentido estritamente científico. Embora, o sentido científico seja função do sentido metafísico.

Anónimo disse...

"Na realidade, há sobreposição (e colaboração) das duas ciências em muitas áreas, nomeadamente no que os físicos chamam física-química e os químicos química-física, na física de estado sólido ou na termodinâmica (física ou química). Mas há não só áreas completamente distintas como abordagens diferentes ao mesmo problema, que se manifestam inclusive na forma como químicos e físicos enunciam, por exemplo, a segunda lei da Termodinâmica, para nós dirigida essencialmente ao equilíbrio químico. Assim, embora o post sobre o átomo e a liberdade de expressão tenha proporcionado uma discussão muito interessante, antes de continuar a história do atomismo gostaria de frisar que para a maioria dos químicos, desde que a química se estabeleceu como ciência, o atomismo é estritamente científico sem quaisquer implicações filosóficas - exceptuando, claro, aquelas que integrámos no método científico."

Não posso senão estar de total acordo consigo. A tese reducionista sempre viveu dentro da física. Isto é, que todas as ciências, em última análise, se resumem à fisica e à matemática. Se alguns casos é díficil de imaginar, na química, principalmente após a segunda quântica, é quase evidente. Dirac foi um dos grandes defensores desta visão, ficando celebre a sua frase: ``the underlying physical laws necessary for the mathematical theory of ... the whole of chemistry are thus completely known, and the difficulty is only that the exact application of these laws leads to equations much too complicated to be soluble.''.

Os químicos têm vindo a resolver o problema utizando a equação de S. de um modo que causa arrepios à maioria dos físicos. O que tem ainda reforçado mais a ideia que a Química não é mais do que física aplicada. Deste modo, não existem grandes "questões filosóficas" na Química, como não há algo como Filosofia da Química.
Contudo, nos últimos anos (10/15) tem havido várias reacções a esta tese. Por um lado, tanto a metodologia, como a abordagem é diferente. Por outro, não assim tão claro que a totalidade da Química se possa reduzir, mesmo em tese, à Física. Deste modo, há quem venha defendendo que existe uma Filosofia da Química. Creio que a maioria dos filosofos da ciência não dão grande crédito a esta tese. O debate está aberto e tem tido alguma vida.

Seja como for, em boa verdade, aquilo que são os "grandes problemas filosóficos" da Física - ou que surgem na Física - não têm reprodução directa na Química. Mal ou bem, os químicos estão preocupados em fazer útil aquilo que surge da Física. Porém, em boa verdade, a grande maioria dos físicos também não estão nada preocupados com as implicações filosóficas. Para eles, aliás, isso das implicações filosóficas é pouco mais do que conversa de treta. Veja aqui o caso do Fiolhais, que dá por certo o que é altamente problemático, que dá por dado o que é uma construção, passa a correr pelos locais onde a Filosofia da Ciência mora. Isto não deixa, como é obvio, de ser uma posição filosófica em si. Posição essa que é não nada fácil de sustentar quando se lida com a Fisica fundamental, mas que parece ser a correcta quando apenas se pretende fazer contas e aplicar as leis. Logo, não admira nada que os Químicos abordem o atomismo no seu sentido estritamente científico. Embora, o sentido científico seja função do sentido metafísico.

Palmira F. da Silva disse...

Caro Carlos P

Logo, não admira nada que os Químicos abordem o atomismo no seu sentido estritamente científico.

Seria complicado não o fazer quando toda a química assenta no atomismo. e, claro, na descrição dos electrões nas muitas e diversas espécies químicas :-)

A afirmação de Dirac para mim enferma de um super optimismo, isto é, assume que conseguimos pôr a química em equação, o que na realidade está longe de ser possível (ainda). Especialmente nos estados condensados da matéria, de longe os mais interessantes para os químicos :-)

Logo, precisamos de causar arrepios aos físicos que chamam átomo pesado ao para nós levissimo carbono se queremos explicar algo, ter capacidade de previsão de propriedades, físicas e químicas, e desenhar novos compostos. Ou seja, poder-se-ia dizer que a nossa reacção em relação à segunda quântica emula a reacção ao atomismo :-)

Anónimo disse...

Sim, sim. Mas, para mim, o mais engraçado é saber que a Física Q. não é atomista ou, pelo menos, tem uma estranha forma de atomismo.

Palmira F. da Silva disse...

Mas a química quântica é certamente atomista :-)

Basta olharmos para a teoria de orbitais moleculares -incluindo teoria de bandas-, talvez a aplicação química da quântica mais popularizada.

Anónimo disse...

Richard Dawkins, na sua obra The Ancestor’s Tale, procurou traçar a suposta linha de ancestralidade dos seres humanos, ao longo das várias fases evolutivas, até ao hipotético ancestral comum.


Supostamente esse ancestral comum seria uma forma de vida do tipo RNA, embora Richard Dawkins tenha admitido a sua ignorância quanto aos detalhes.

Em todo o caso, o RNA teria a possibilidade de armazenar informação codificada, de combinar com outro RNA para a criação de máquinas moleculares e de se auto-replicar (embora de forma limitada e em circunstâncias muito particulares.

Não é preciso ser-se criacionista para se saber que os estudos mais recentes acerca do modo como as células realmente se auto-duplicam tornam esta concepção da vida RNA incomportavelmente irrealista.

Um problema central na divisão das células é que uma grande proporção do genoma é necessária para o funcionamento normal da célula.

Quando uma célula se divide não apenas tem o DNA que continuar a manter as funções normais da célula, como também tem de apoiar a actividade extra de divisão celular.

Daqui resulta um monstruoso problema logístico e informativo, já que é necessário evitar conflitos entre a maquinaria de transcrição e a maquinaria de duplicação. A não ser assim, tudo deixaria de funcionar.

A solução que Deus encontrou para este problema logístico é surpreendente.

A duplicação não começa num único ponto em especial, mas em milhares de pontos diferentes.

Mas de todos os milhares de pontos de partida, apenas um subconjunto é utilizado em cada um dos ciclos celulares – diferentes subconjuntos são utilizados em diferentes tempos e lugares, dando origem a um sistema de extrema complexidade, que só agora se começa a vislumbrar minimamente.

Também aqui Deus mostra a sua inteligência e o seu poder.

Fernando Martins disse...

"Não é preciso ser-se criacionista para se saber que os estudos mais recentes acerca do modo como as células realmente se auto-duplicam tornam esta concepção da vida RNA incomportavelmente irrealista."

Não é preciso ser criacionista, mas ajuda - é isso ou ser burro...

Será que na FDUC os "dôtores" criacionistas não têm de preparar aulas?

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