quarta-feira, 1 de agosto de 2007

AS CORES, SAMPAYO E GOETHE


Não há nada como encontrar alguém que saiba bem um assunto para aprender alguma coisa. Foi o que sucedeu mais uma vez comigo há poucas semanas quando "tertuliava" - não tenho a certeza que o verbo exista - no Porto com o físico Luís Bernardo sobre o seu livro "Histórias da Luz e das Cores" (Editora da Universidade do Porto). A certa altura afirmei que um autor português do século XVIII tinha escrito um "Tratado das Cores", em que citaria Goethe. Pois estava na audiência um especialista, que logo e em tom muito simpático me emendou: não foi o autor português, Diogo de Carvalho e Sampayo, que citou Goethe, mas, muito melhor, foi Goethe quem citou Sampayo.

E entregou-nos o original de um seu livro em curso de publicação na Porto Editora (colecção "Ciência e Iluminismo") em que expõe o assunto tintim-por-tintim. A obra intitulada "O sistema das cores. Diogo de Carvalho e Sampayo" além de colectar vários textos de Sampayo, contém um excelente estudo escrito por Rui Graça Feijó, historiador formado na Universidade de Coimbra e especialista em Sampayo. Foi ele, de resto, quem contribuiu para a edição fac-similada do "Tratado das Cores", que saiu do prelo da Chaves Ferreira (um belo livro, que tem o único senão de ser demasiado caro: eu ando a namorá-lo há uns anos e se o vir com desconto não hesitarei).

Esse "Tratado das Cores" foi publicado na ilha de Malta no ano da graça de 1787, quando o autor, cavaleiro da ordem com esse nome (uma ordem internacional que teve presença entre nós), lá residia. Foi em 1750 anos, quando o rei D. João V estava prestes a falecer, que nasceu em Lamego o cavaleiro Sampayo. Estudou na Universidade de Coimbra onde concluiu o curso de Direito com apenas 18 anos. Foi depois magistrado em Coimbra, tendo vivido aí os tempos conturbados da reforma pombalina da Universidade (1772). Em 1783 foi para a Comarca de Viana do Castelo, para, passados dois anos, embarcar para Malta. Em 1788 regressou para, passado um ano, se mudar para Madrid onde foi embaixador. Finalmente, em 1801 regressaou, para se estabelecer como agricultor em Lamego, casar-se (o solteirão só o fez aos 56 anos) e morrer em 1807, no início das invasões francesas, com apenas um ano de casado. Este ano comemoram-se, portanto, os 200 anos da morte de Diogo Sampayo.

O homem viveu no século das luzes e, embora em ciência fosse auto-didacta, estudou em profundidade as cores. Tem três livros sobre o assunto, além do já referido Tratado, publicou em 1788 em Lisboa a "Dissertação sobre as cores primitivas com hum breve tratado da composição artificial das cores" e em 1791, em Madrid, a "Memória sobre a formação natural das cores". Não apenas um mas todos estes livros são enumerados por Johann Wolfgang von Goethe, na sua famosa "Farbenlehre" ("Teoria da Cor"). Escreveu o génio alemão:

"O autor, um cavaleiro da ordem de Malta, foi conduzido casualmente á observação das sombras de cor. Após poucas observações precipita-se para uma espécie de teoria e procura convencer-se da mesma mediante várias experimentações. As suas experiências e modos de pensar estão esboçados nos quatro escritos acima citados e resumidos no último [Memória]. Ainda as esprememos mais para dar conta aos nossos leitores desses esforços que, embora honestos, são todavia estranhos e insuficientes."

Os génios também se enganam e Goethe julgou que tudo estava contido no único volume que de facto tinha lido, a "Memória", o que de facto não era verdade. De resto, as semelhanças entre as teorias de Goethe e a Sampayo (os dois diletantes em matéria de óptica) são maiores do que as palavras do alemão deixam transparecer. Mas será que Goethe lia português? Não, mas ele teve acesso ao livro e deve ter feito, embora socorrendo-se de um dicionário português-inglês, uma tradução. Chegou até nós uma tradução manuscrita em alemão, do punho do secretário de Goethe, mas que provavelmente é da autoria do poeta de Frankfurt.

A história é ainda mais interessante. Como é que Goethe soube de Sampayo? Pois, em 1799, o alemão Wilhelm von Humboldt, irmão do grande Alexandre von Humboldt e ele próprio um cientista eminente, travou conhecimento com Sampayo em Madrid, que lhe ofereceu a "Memória". Este livro foi enviado por Wilhelm von Humboldt ao seu amigo Goethe em 1801 porque sabia do interesse dele em tudo o que dissesse respeito às cores (Goethe, com algum romantismo e sabemos hoje sem sucesso, dedicava-se a desmontar a doutrina das cores de Newton). Numa carta anterior explicava quem era Sampayo:

"Carvalho, 'Ambassateur' português. Uma pessoa bizarra. É Cavaleiro da Ordem de Malta e nunca esteve noutro lugar para além de Malta e da Península Ibérica. Mas estudou muito e até sabe, com jeitinho, alemão suficiente para ler. Tem poucos conhecimentos do que os outros fizeram mas compensa com ideias muito originais. Acerca das cores fez descobertas próprias que se assemelham muito às de Goethe e onde, pelo menos, no que diz respeito às experiências, não há nada a dizer conforme me assegurou Herrgen e também o meu irmão que as viu. Contudo, é uma pessoa estranha, muito simpatizante da língua portuguesa e de tudo o que é português. (...) A sua apresentação é mais distinta do que fidalga e interessante (...) e está ainda cheio de cerimónias antiquadas".

Herrgen era um outro cientista alemão, que viveu em Madrid. Ele próprio traduziu para alemão os livros de Sampayo, tendo enviado os manuscritos para um editor de Goettingen, que nunca as publicou. Há pois duas traduções em alemão da "Memória" de Sampayo, uma das quais inédita, que está a ser trabalhada por um estudioso germânico.

Resumo da história: Sampayo era um espírito curioso (escreveu: "eu comecei a considerar o estudo das cores por uma mera curiosidade: achei-o tão belo, e interessante, que lhe dediquei por algum tempo a maior reflexão"), mas um homem sozinho. Os livros da Biblioteca Joanina e da Biblioteca da Ordem de Malta (cujos catálogos foram meticulosamente investigados por Rui Feijó) permitiram-lhe aprofundar o asunto das cores. Teve sorte ao encontrar em Madrid sábios alemães. Goethe reconheceu o seu valor - de outro modo nunca teria perdido tempo a traduzi-lo - mas, como era um pouco arrogante, menosprezou o trabalho do português, que até podia em certos pontos rivalizar com o dele. Por último, Rui Feijó fez um excelente trabalho a tirar Sampayo de um esquecimento que este de modo algum merece. Agradeço-lhe imenso as indicações que recolhi do seu futuro livro, que recomendo vivamente. O livro a sair ainda este ano tem mais, muito mais, do que aqui se conta, incluindo os textos integrais de obras de Diogo Sampayo. Além das referidas, há ainda um interessante "Tratado de Agricultura", com numerosas observações científicas.

3 comentários:

A Rocha International disse...

O livro "Tratado das Cores" de Sampaio está actualmente em processo de conversão para texto livre no site colectivo Distributed Proofreaders: veja a página do projecto (é necessário registar-se para poder colaborar no projecto).

Ali, um voluntário pode pedir uma página para corrigir o texto vindo do reconhecimento óptico de caracteres, comparando com a imagem da página (ver exemplo de imagem). O texto produzido por um voluntário vai ser revisto por outro, passando por cinco rondas e depois por uma verificação final por um único voluntário. O resultado é publicado no Project Gutenberg, ficando igualmente no domínio público.

Agradeço a divulgação desta iniciativa para preservar o domínio público literário em língua portuguesa. Se me quiser contactar pode usar o email free (ponto) acb (at) gmail (dot) com

Júlio Reis disse...

Está disponível a partir de hoje a edição electrónica do Tratado das Cores: http://www.gutenberg.org/ebooks/31190

Cláudia S. Tomazi disse...

Segundo Goethe: ...foi conduzido casualmente á observação das sombras de cor. Após poucas observações precipita-se para uma espécie de teoria...

Gostaria modestamente de colocar, que em primeiro lugar trata-se de cores por "nuances" e não de sombras, como refere-se o distinto alemão.
E por segundo que infelizmente a língua germânica ao que tudo indica não é tão precisa, com relação a detalhes que emendam porcamente, por traduzirem tratados desta magnitude e importância como os de Sampayo.
E por terceiro, o tempo ainda é guardião de certeza e precisão, em se deixar passar, qualquer respingo ao que toca a serenidade e virtude ao Tratado das Cores do renomado cavaleiro em questão.

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