segunda-feira, 23 de julho de 2007

MAIS LEITURAS DE VERÃO


Houve quem reclamasse porque eu só tinha indicado para as férias livros de não ficção. Poderia dizer que a fronteira entre ficção e não ficção é, por vezes, muito ténue e outras vezes inexistente (por exemplo, Teilhard de Chardin afirmou que “à escala do cósmico, só o fantástico pode ser verdadeiro”). Mas acho que, apesar de tudo, há uma distinção entre realidade e imaginação. Confesso que, em geral, leio mais livros de não ficção do que de ficção. Mas, nas férias, sou um devorador de literatura. Nessa altura deixo que a imaginação ganhe por muitos à realidade. Eis aqui, por ordem alfabética do autor, dez títulos literários recentes que proponho à superior consideração dos estimados leitores:

- Cristóvão de Aguiar, “A Tabuada do Tempo - A lenta narrativa dos dias”, Almedina. O escritor açoriano (da pequena povoação, Pico da Pedra, em São Miguel, de onde também é natural o escritor e crítico Onésimo Teotónio Almeida) volta ao estilo dos seus “Diários de Bordo”, que é do melhor que de escrita diarística se publica entre nós (o autor ganhou já, por um dos “Diários", o Grande Prémio de Literatura Biográfica da Associação Portuguesa de Escritores, e esta “Tabuada do Tempo” valeu-lhe, pela segunda vez, o Prémio Miguel Torga da cidade de Coimbra). Curiosamente, depois de ter andado por outras editoras como a Caminho e a Dom Quixote, o autor regressa ao editor que lhe publicou nos anos 60 o seu primeiro livro, antes de ele embarcar para a guerra colonial. Cristóvão de Aguiar está agora reformado, mas durante muitos anos foi professor de inglês na Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra. Fui seu aluno e com ele aprendi muitas expressões idiomáticas de língua inglesa, tendo-me até preparado para a minha primeira viagem a Inglaterra. E corrigiu os primeiros textos que publiquei em jornais. Como sou amigo dele (esta nota serve para confirmar a regra de que os críticos tendem a falar dos livros dos amigos), já me fez aparecer numa das suas páginas diarísticas!

- John Darnton, “O Pecado de Darwin”, Casa das Letras. Esta é uma história bem contada que está entre a ficção e a não ficção. Trata-se de um romance histórico-científico se quisermos, muito apropriado nesta altura em que se aproxima o ano de Darwin (2009) e as ideias de Darwin, apesar de todas as controvérsias, vão triunfando. O autor foi durante muitos anos jornalista do “The New York Times”, tendo chegado a ganhar o prestigiado prémio Pulitzer. Em Portugal, tinha já publicado “Neandertal”, na Presença, outro romance histórico-científico sobre o eventual cruzamento do homem de Neandertal com o Homo sapiens. Em “O Pecado de Darwin” expõe o modo como o historiador natural inglês chegou à teoria da evolução.

- Olga Grushin, “A Vida de Sonho de Sukhanov”, Bizâncio. Um grande primeiro romance de uma escritora russa que vive nos Estados Unidos, considerado pela revista “Granta” uma das obras mais originais da ficção actual e pelo "Washigton Post" como elemento do “top ten” dos livros de 2006. O tema, tratado de uma forma tão irónica como subtil, é a queda da “vida de sonho” de um quadro soviético, um apparatchik, que tinha renunciado aos seus ideais de juventude, para afinal se ver confrontado com eles... Bem haja à editora Bizâncio que nos traz este esplêndido romance pouco depois de ter aparecido lá fora!

- Ha Jin, “Destroços de guerra”, Gradiva. De um autor chinês-americano, dissidente do regime chinês, que já nos tinha dado “Os Alienados”, “O Noivo” e “À Espera”, é um romance de guerra que mistura verdade e fantasia, com forte predomínio da primeira. O autor, da minha idade, é filho de um militar, que viveu o tempo da cruel guerra da Coreia, tão bem retratada neste livro (vencedor do prémio PEN/Faulkner e finalista do Pulitzer).

- Ian McEwan, “Na Praia de Chesil”, Gradiva. Pois se o leitor quer só um romance, breve, que não só entretenha na praia como faça pensar agarre neste. Vai ficar agarrado à história de uma noite de núpcias completamente falhada numa fria praia inglesa, nos anos 60, na qual a noiva deixa o noivo passadas uma horas do feliz casamento. Parece irreal, mas a realidade pode ultrapassar a mais imaginativa ficção. O próprio McEwan conhece desde há pouco um romance na sua vida real cuja trama é bem mais curiosa do que as dos seus romances (reunidos desde há pouco numa colecção da Gradiva): soube da existência, completamente insuspeitada, de um irmão, hoje operário da construção civil, que os pais, no tempo da Segunda Guerra Mundial e na altura ainda não casados, tinham dado para adopção...

- Joseph Mitchell, “Do Fundo da Baía”, Âmbar. Depois de “O Segredo de Joe Gould” (Dom Quixote, com prefácio laudatório de António Lobo Antunes, que me fez comprar o livro) e de “Sou todo ouvidos” (Âmbar), esta é a terceira obra em português do lendário jornalista e escritor norte-americano, falecido em 1996 com 88 anos, que trabalhou durante dezenas de anos para a revista “The New Yorker”. Conheceu como mais ninguém os vagabundos da "Big Apple", transformando anónimos personagens reais em autênticos heróis literários. No outro dia, o melhor repórter português, o jornalista do “Público” Adelino Gomes, recomendou-me "Sou todo Ouvidos" do Mitchell, descobrindo então que um dos seus autores favoritos afinal não era um segredo bem guardado!

- Flannery O’Connor, “Um Bom Homem é Difícil de Encontrar”, Cavalo de Ferro. Um bom título como este é difícil de encontrar. A tradutora, a bióloga, historiadora de ciência e escritora Clara Pinto Correia, comenta na contracapa: “Li as histórias todas, uma por uma, noite dentro, sempre a sentir-me quase na margem de um rio ppor onde se navega para outra dimensão qualquer. Era incrível. Era hipnótico. Era impossível interromper antes de se chegar ao fim e depois eu apagava a luz e ficava a dar voltas na cama”. Que mais pode uma tradutora querer de um livro? Ah, esquecia-me de dizer: a contista norte-americana morreu em 1966 com apenas 39 anos, de lupus, uma doença do sistema imunológico que na sua família era hereditária. Perdeu-se precocemente um grande talento.

- Miguel Ramalho Santos, “Auto”, Palimage. Para quem anda à procura de uma obra inovadora, tente esta escrita nova, irreverente e torrencial (elogiada por Maria Velho da Costa e por Lídia Jorge) um investigador em biomedicina, na Universidade da Califórnia, São Francisco, nos Estados Unidos, onde reside. A cidade de Coimbra, onde o autor cresceu, aparece aqui retratada como nunca o foi. Miguel Ramalho Santos tem um irmão, João Ramalho Santos, que é também investigador científico e também autor de ficção recente (“Portland, Portugal, Um Voo Doméstico”, Afrontamento).

- Manuel da Silva Ramos, “O Sol da Meia Noite seguido de Contos para a Juventude”, Dom Quixote. O autor de "Viagem com Branco no Bolso” (resultado de uma viagem de investigação a Moçambique), "Jesus, The Last Adventure of Franz Kafka” (resultado de uma bolsa de criação literária em Praga) e "Café Montalto" (uma mescla de ficção e não ficção sobre a indústria têxtil na sua cidade natal da Covilhã) é uma espécie de Henry Miller português. Neste “O Sol da Meia Noite” o cenário é Lisboa, onde o autor agora reside, mas a sua escrita continua criativa e arrasadora. É, segundo o autor, “uma viagem ao fim da noite lisboeta cheia de sexo, nervos, álcool e loucura e que termina, não por um desastre, mas por uma ressurreição". Por seu lado, os contos seguintes são "contos da solidão, onde o sexo é rei e súbdito o amor". Claro que só pode escrever assim quem viveu assim... Última hora: O autor terminou um novo livro, “A Ponte Submersa”, sobre o “serial-killer” de Santa Comba Dão. Mais uma vez a realidade vai tornar-se ficção.

- Philip Roth, “Todo-o-Mundo”, Dom Quixote. Roth é um dos melhores escritores norte-americanos vivos, tendo vários títulos em português (ainda outro dia apanhei numa Feira do Livro “O Complexo de Portnoy”, da Bertrand, praticamente grátis). Em 2002 o maior galardão da Academia Americana de Artes e Letras, a Medalha de Ouro da Ficção, atribuída antes a John dos Passos, William Faulkner e Saul Bellow. Em 2005, tornou-se também o terceiro escritor americano vivo a ter a sua obra publicada numa colecção completa e definitiva pela Library of America. Este seu novo livro não fica nada atrás dos anteriores, vários dos quais existem em português. O tema é o corpo, a degradação física e a morte: “A velhice não é uma batalha; a velhice é um massacre”. A religião é de pouco consolo para este autor: “A religião era uma mentira que tinha reconhecido cedo na vida, e achava ofensivas todas as religiões, considerava sem sentido e pueris as suas patetices supersticiosas, não suportava a sua completa imaturidade.”

Concedo: a realidade e a ficção estão, por vezes, tão bem misturadas que não é possível destrinçá-las...

4 comentários:

Anónimo disse...

Boa recomendação: CRISTÓVÃO.

Azul Neblina disse...

Gosto muito do Roth. E o "Portnoy's complaint" é delicioso. Subscrevo essa escolha. A Flannery O'Connor tamb+em me parece uma escolha bem interessante. Eu ando a reler o "Assassínio como uma das Belas Artes", do de Quincey. Parece-me uma leitura altamente estival.

Anónimo disse...

leu tudo?

Anónimo disse...

Este homem está impregnado de modernidade.
Escreve, com a mesma segurança, sobre sexo e tecnologia cirúrgica cardiovascular.
Os amigos, a família, as mulheres, a velhice, o desejo, a doença e a morte.
Uma memória glacial.
Estava a contar com ficção e sai-me mais um livro técnico.
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