sexta-feira, 11 de maio de 2007

O que é a justificação?

A teoria do conhecimento ou epistemologia é a disciplina filosófica que estuda a natureza, limites e possibilidade do conhecimento. Num certo sentido, toda a filosofia se divide entre metafísica, que estuda os aspectos mais gerais da realidade, e a epistemologia, que estuda os aspectos mais gerais do conhecimento. Afinal, é argumentável que nada há além da realidade e do nosso conhecimento da realidade.

Entre outras coisas, em epistemologia (não confundir com filosofia da ciência) estuda-se a noção de justificação e a sua relação com a verdade e o conhecimento. Mas o que é a justificação?

Intuitivamente e popularmente as pessoas tendem a ter uma concepção metafísica de justificação. Contudo, não é essa a concepção mais comum em epistemologia, nem sequer é claro que tal concepção não seja uma confusão entre verdade e justificação.

A questão torna-se mais clara se pensarmos deste modo: será possível ter justificação para aceitar uma crença falsa? Segundo a concepção metafísica da justificação, não é possível. Mas isto acontece apenas porque se entende justificação como uma garantia de verdade. Neste sentido, ter uma crença justificada implica a verdade da crença. Evidentemente, não é este o sentido de “justificação” usado na análise tripartida do conhecimento como crença verdadeira justificada — pois nesse caso a análise seria redundante: a verdade estaria a mais, pois a justificação já garantiria a verdade.

A concepção mais defensável, e a concepção associada à análise tripartida do conhecimento, é que um agente cognitivo está justificado em acreditar em algo quando está em jogo um qualquer processo fidedigno de formação de crenças verdadeiras. Mas um processo de formação de crenças pode ser fidedigno e no entanto dar origem a crenças falsas, em certas circunstâncias. E é nesses casos que o agente está justificado em acreditar em algo, apesar de a crença ser falsa. Por exemplo, podemos dizer que Ptolomeu tinha uma crença justificada de que a Terra estava imóvel. O tipo de indícios que ele usava eram adequados para sustentar essa crença — mas teve azar porque tais indícios são ou enganadores ou insuficientes para estabelecer a verdade de tal crença. Posto de outro modo: Ptolomeu não cometeu qualquer “pecado” epistémico, não cometeu qualquer erro epistémico. Apenas estava numa circunstância infeliz. Desde que tenha analisado cuidadosamente os dados empíricos, tenha raciocinado sem cometer erros triviais e tenha procurado activamente dados contrários à sua crença de que a Terra está imóvel, Ptolomeu tinha justificação para aceitar a sua crença, apesar de esta ser falsa.

É aliás defensável que esta é a grande diferença entre os erros da ciência e os acertos da religião. As teorias erradas da ciência são crenças justificadas no contexto em que se pensa que são verdadeiras, ao passo que mesmo as crenças verdadeiras da religião são sempre injustificadas no contexto religioso porque os mecanismos de justificação de crenças usados pela religião (tradição e autoridade, visões místicas pessoais e vivenciais, insusceptíveis de testes independentes) nada justificam. Quando a ciência erra, não peca epistemicamente. Mas a religião, mesmo quando acerta na verdade por sorte, peca epistemicamente.

Distingue-se também habitualmente em filosofia a noção de estar justificado da noção de ser capaz de articular uma justificação. O exemplo típico é uma criança que está justificada em acreditar que há leite no frigorífico porque abriu o frigorífico e lhe pareceu ver leite numa garrafa. Mas é claro que uma criança não é capaz de articular uma justificação, que teria de incluir conhecimentos complexos de percepção visual. Contudo, mesmo sem ser capaz de articular tal justificação, está justificada.

Também é evidente que a crença da criança pode ser falsa — afinal, a mãe pode ter colocado um qualquer líquido branco na garrafa do leite, sem a criança saber. Se não aceitarmos que a crença da criança está justificada, é porque fazemos coincidir a justificação com a verdade, o que a generalidade dos filósofos recusaria, e o que tornaria a análise clássica do conhecimento redundante por definição.

11 comentários:

António Parente disse...

Estou em completo desacordo com algumas questões focadas neste post. Preciso urgentemente de um curso de filosofia em horário pós-laboral para ganhar autoridade que me permita contestar um filósofo profissional.

Anónimo disse...

Subjacente a este entendimento está a ideia de que a filosofia humana é que tem autoridade para definir o que é e não é pecado epistemológico. É uma opinião, de resto questionada hoje por muitos filósofos pós-modernos, que negam a possibilidade de qualquer conhecimento.

A Bíblia, aceite pelos cristãos como Palavra de Deus, afirma que o reconhecimento de Deus é o princípio de todo o conhecimento.

Isso significa que, de acordo com este critério, peca epistemologicamente o conhecimento que preferir a autoridade de homens falíveis à revelação de um Deus infalível.

Por outro lado, se a Palavra de Deus é autoridade, a mesma não necessita de qualquer validação externa, sob pena de a entidade validante passar a ser a autoridade.

A verdade da revelação foi escrita de uma vez por todas. Jesus Cristo dizia: está escrito! Ele referia-se sempre à autoridade dos escritos de Moisés e dos Profetas como divinamente inspirados.

Diferentemente,a filosofia humana está constantemente a ser rescrita. Como dizia o apologeta cristão Tertuliano, Jerusalém não tem nada que ver com Atenas.

Anónimo disse...

É graças à revisibilidade do conhecimento humano que hoje sabemos que afinal os Neandertais são verdadeiros seres humanos e que os Australopithecus afarensis não são ancestrais do ser humano, pelo que o Rerum Natura deve rever a sua "árvore genealógica".

Joao Galamba disse...

Desidério,

Deixo aqui um texto do Charles Taylor intitulado "Overcoming Epistemology". Gostava de saber a tua opinião.
(não faço a minima ideia porque está num site chamado marxists.org, mas enfim)
http://www.marxists.org/reference/subject/philosophy/works/us/taylor.htm

Joao Galamba disse...

oooops não fiou todo
www.marxists.org/reference/subject/philosophy/works/us/taylor.htm

Fernando Dias disse...

Em que devemos acreditar? Aqui talvez invocarei o outro conceito de JUSTIFICAÇÃO,ou não, (o metafísico), mas Desidério Murcho corrigir-me-á, ou não.

Tal acreditar, deveria implicar uma DECISÃO. Esta baseia-se em critérios de JUSTIFICAÇÃO que remetem para princípios de racionalidade.

A DECISÃO é voluntária, porque implica autodomínio, e não é um desejo ou uma opinião. Uma criança de um ano de idade ou os animais irracionais têm desejos, mas dificilmente tomarão decisões. Deseja-se o impossível (p.ex: Deus, imortalidade, etc.), mas não há decisão que se possa tomar acerca de coisas impossíveis. Apenas se pode decidir acerca daquilo que pode ter uma JUSTIFICAÇÃO.

Alef disse...

Parece que vou continuar a esperar pelo dia em que possa concordar com alguma coisa que o Desidério diz sobre religião... ;-)

Mas não vou entrar na questão da justificação em religião (isto implicaria algumas questões de método teológico), mas apenas questionar o uso da expressão «pecar epistemicamente», que me parece inapropriada neste «post». No «post» «pecado» (embora uma vez entre aspas) aparece como sinónimo de «erro» -- «Ptolomeu não cometeu qualquer “pecado” epistémico, não cometeu qualquer erro epistémico» -- e isto leva-me a levantar uma objecção importante.

«Pecado» é uma categoria estritamente teológica, que tem como correspondente extra-teológico a palavra «culpa», não «erro». Só há «pecado» onde houver responsabilidade pessoal, onde couber uma «culpa», não simplesmente «erro». Pode haver erro e não haver qualquer pecado e de alguma maneira também pode acontecer o inverso. S. Tomás chega a dizer que se alguém fizesse um acto de fé contra a sua consciência pecaria...

Lembro-me de ler um texto de Heidegger em que se recorda estas noções de «pecado» e «culpa»... Ah, encontrei aqui uma tradução espanhola:

«[...] todos los conceptos teológicos fundamentales tienen [...] un contenido precristiano [...], por ejemplo, el pecado sólo se revela en la fe [...] pero si hay que interpretarlo de manera teológico-conceptual [...] entonces el que exige el retorno al concepto de culpa es el contenido mismo [...]».
(M. Heidegger, Hitos, Alianza Editorial).

O conceito de culpa aparece, por exemplo, na tragédia grega. O conceito de pecado, não.

Obviamente, o erro pode ser culpável ou não. Se é culpável, no àmbito religioso isso chama-se pecado, muito embora o pecado não se reduza a isso.

Alef

Desidério Murcho disse...

Caros Leitores

Obrigado pelos comentários! Parente, eu só disse "é argumentável que", o que é verdade. O que você discorda não é que seja argumentável que as crenças religiosas nunca têm justificação, que foi o que afirmei, mas que seja verdade que nunca têm justificação, o que é bem diferente.

Alef, o significado das palavras é transferível e "pecado" exprime bem a ideia -- não se trata apenas de fazer um erro, mas de fazer um erro por negligência, com culpa própria, digamos assim.

F. dias: "Crença" em filosofia é diferente de "convicção" ou "opinião", que são o tipo coisa mais sofisticada que uma criança muito nova não pode ter. Mas pode ter crenças: representações do mundo como sendo de certa maneira e não de outra.

Espero que estas notas sejam úteis!

Anónimo disse...

Então, há crença em que algo é assim (ou não-assim) até que se comprove que algo é assim (ou não-assim). Quando dois de nós comprovam a verdade de uma asserção, pelo menos dois de nós não se relacionam como crentes com essa asserção. A prova garante a verdade de tal; a justificação legitima a crença na verdade de tal. (Percebi?)

Luís Gurruçado

Anónimo disse...

Caro Desidério

Acho tão discutível essa noção de justificação epistémica que nem a vou comentar aqui exaustivamente. Há algumas confusões e várias imprecisões no teu texto (não podemos perceber muito de tudo, não é?) e posso prová-las recorrendo a bibliografia especializada (Platinga, Lerher, Sosa, Huemer, Bonjour, Goldman, etc). Esqueceste-te tb de mencionar que o conceito de JE não é standard e varia consoante a teoria da justificação que adoptes.

Também não é verdade que a maioria dos filósofos enverede pela definição que sugeres. O tema da JE não se esgota na Def. Tripartida, e há inúmeras versões do que é estar justificado em acreditar em P. Uma delas, muito importante, e que não mencionas, é que a JE deve ser uma valorização e uma responsabilização da crença.

Ah. Também não é correto dizer que a JE tomada no seu sentido mais forte seja redundante com a condição Verdade. podemos ter verdade e ainda assim necessitar de justificação por o agente não estar consciente da verdade ou acertar nela por mera sorte, como mostram os casos-tipo Gettier e outros bem mais complicados. Mas fica lá com a tua :-)

Caso desejes discutir o assunto, sabes o meu mail.

Um abraço,

Luís E. R

Anónimo disse...

está num site de marxistas porque tanto os marxistas como o Sr. Taylor acreditam, como sabes, numa concepção orgânica ou comunitária da sociedade...Ambos associam a epistemologia ao individualismo atomizante..um erro grasso (embora seja, prima facie, superficialmente plausível)

A epistemologia não necessita de ter um caracter fundacional para reter a sua credibilidade. A sua plausibilidade depende da sua (não) falsificação. Não implica, também, a negação do holismo tão querido de Taylor etc.

Seria interessante, de facto, saber a opinião do Desidério sobre este texto.

abraço

NOVA ATLÂNTIDA

 A “Atlantís” disponibilizou o seu número mais recente (em acesso aberto). Convidamos a navegar pelo sumário da revista para aceder à info...