segunda-feira, 28 de maio de 2007

EM DEFESA DA HISTÓRIA DAS CIÊNCIAS E DA TECNOLOGIA


Post convidado de Elvira Callapez, química e historiadora da ciência, actualmente na Universidade de Berkeley, California, EUA. Na figura, o pioneiro da história da ciência George Sarton.

“Science without its history is like a man without a memory” [1]. É assim que Russel, um conceituado historiador da química, comenta, no seu artigo “Whigs and Professionals”, o distanciamento dos cientistas relativamente à história das suas ciências.

Na mesma linha de pensamento, George Sarton (1885-1956), um dos mais proeminentes historiadores das ciências e fundador da prestigiada revista ISIS (criada em 1912), no início dos anos 50 do século XX, perguntava por que é que a história da ciência era tão negligenciada. Vai ainda mais longe,afirmando que as pessoas que não têm conhecimento sobre ciência ou apenas a conhecem superficialmente têm medo dela e por isso estão pouco inclinadas para a leitura da sua história [2].Uma das suas grandes preocupações foi estabelecer a história da ciência como uma disciplina académica legítima e autónoma. Muito lutou para a profissionalização deste ramo de conhecimento. Terá sido feita justiça a Sarton?

Porquê estudar história das ciências? Jane Maienschein, no seu artigo, “Why Study History for Science?” [3] , diz com propriedade que se deve estudar história da ciência porque a história mostra a força e o entusiasmo da ciência e porque a perspectiva histórica pode ajudar a perceber a diferença de resultados produzidos pelas várias ciências, sejam eles bons ou maus [4]. À semelhança do que acontece quando se estuda a evolução histórica dos ecossistemas ou o processo histórico do desenvolvimento individual através dos tempos, também os cientistas deveriam ter conhecimento da natureza histórica das ciências. Aliar a boa prática de uma ciência a uma boa perspectiva histórica decerto permitirá aos cientistas avaliar melhor o seu próprio trabalho assim como o dos outros. A ciência não tem um método estático, imutável ao longo do tempo, mas, pelo contrário, é um processo dinâmico que se constrói sobre sucessos e fracassos. A ciência beneficia desses sucessos e fracassos na medida em que pode usufruir dos bons resultados e evitar os erros antes cometidos.

Apesar de se assistir ao entusiasmo e reconhecimento da importância pedagógica e humanista do ensino da história das ciências, ainda perduram resistências por parte de alguns agentes educativos. Não é raro sentir a indiferença de certos professores de ciências face ao ensino da história das ciências, e em particular da sua ciência, argumentando que, num mundo de tão rápidas descobertas científicas e tecnológicas, quase não têm tempo para absorverem os novos conhecimentos. Dizem, por isso, que a história das ciências pouca ou nenhuma relevância tem para aquilo que os alunos têm de aprender na actualidade. Esta atitude desvaloriza, à partida, o valor da história das ciências como uma importante fonte de informações e materiais para o ensino da ciência [5]. A mesma resistência se verifica nos departamentos de história sendo, por isso, cada vez mais importante que se estabeleça e desenvolva uma cooperação entre as ciências e as humanidades. As duas áreas de saber ganham uma com a outra. O cientista, seja químico, físico, biólogo, médico, sabe da sua área técnica de especialização, mas não está familiarizado com as fontes e os métodos históricos. O mesmo acontece com o historiador que, ao pretender analisar assuntos científicos, não possui alguns requisitos para a compreensão das matérias técnicas [6]. Os departamentos de ciências e os de história lucrariam mutuamente se abrissem as portas aos historiadores da ciência e se se considerassem aliados, com objectivos comuns no sentido do desenvolvimento cultural dos países.

O nosso país deve muito às universidades que lançaram os programas de pós-graduação em história e filosofia das ciências (mestrados e doutoramentos), como seja a Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa e, mais recentemente, a Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, para referir apenas os que melhor conheço. De acordo com George Basalla, um reputado historiador da tecnologia, os programas de pós-graduação têm uma responsabilidade especial nesta área porque treinam uma nova geração de historiadores da ciência que provavelmente encontrarão mais empregos como professores do que como investigadores em institutos especializados. Afigura-se necessário estimular uma discussão frutuosa deste assunto para moldar o futuro da história das ciências [7].

Penso que se torna premente, na actualidade, uma licenciatura em história das ciências e da tecnologia nas universidades científico-técnicas e de humanidades, perante a deficiente cultura científica e humana a que se assiste, fruto de profundas mudanças na sociedade. O país teria também bastante a ganhar se criasse esta área de conhecimento nos curricula das escolas básicas e secundárias. De acordo com Basalla, a aposta no ensino da história das ciências favorece os estudantes que não estão particularmente interessado nem só em história nem só em ciências [8].

Para concluir tomaria as palavras de George Sarton, o qual defende a humanização da ciência no sentido de mostrar as suas estreitas relações com as outras actividades humanas, a sua ligação com a nossa própria natureza. Humanizar a ciência não implica diminuir o seu valor nem a sua importância, mas, pelo contrário, torna-a mais significativa, mais impressionante, mais bondosa e mais amável. “History is but a method - not an aim” [9].


NOTA:

Neste apontamento optei por não discutir alguns conceitos que envolvem o debate filosófico e histórico em redor da história da ciência e da tecnologia tais como: ciência versus tecnologia, anacronismo versus diacronismo, internalismo versus externalismo e "whiggish" versus "priggisgh". Quando me refiro ao ensino da ciência, claro que não excluo o ensino da tecnologia. Gostaria ainda de convidar os leitores para a leitura de um artigo publicado na "Science" em 1974 por Stephen Brush sob o título “Should the History of Science be Rated X?”, Science, Vol. 183, No. 4130, March 1974, pp. 1164-1172. E, para os engenheiros que gostam de humanidades, recomendo a obra: Samuel C. Florman, "The Existential Pleasures of Engineering", St. Martin’s Press, New York, 1976.

REFERÊNCIAS:

[1] Colin Russel, “Whigs and professionals”, Nature, Vol. 308, 26 April 1984, p. 778

[2] George Sarton, The Life of Science – Essays in the History of Civilization, Indiana University Press, 1960, p. 29.

[3] Tradicionalmente, são cinco os argumentos clássicos que justificam o estudo da história das ciências: 1 - auto aperfeiçoamento: a história ilumina a ciência e torna-nos melhor; 2- eficiência: evita repetir erros do passado, aprende-se com os erros; 3 - perspectiva: permite fazer claramente avaliações e portanto torna a ciência melhor; 4 - imaginação: oferece um maior leque de ideias; 5 - educação: promove a literacia científica e a compreensão pública da ciência. Ver Jane Maienschein, “Why Study History for Science?”, Biology and Philosophy, Vol. 15, 2000, p. 340.

[4] Ibidem.

[5] Leopold E. Klopfer, “The Teaching of Science and the History of Science?”, Journal of Research in Science Teaching, Vol. 6, 1969, p. 87.

[6] Richard H. Shryock, “The Need for Studies in the History of American Science”, Isis, Vol. 35, No. 1 (Winter) 1944, p. 10

[7] George Basalla, “Fiftieth Anniversary Celebration of the Society – Observations on the Present Status of History of Science in the United States”, Isis, Vol. 66, Dec. 1975, p. 470.

[8] Ibidem.

[9] George Sarton, op. cit., p. 58.

2 comentários:

Anónimo disse...

Bom post, concordo plenamento com a historia das ciencias, o ensino não deve ser espartilhado, por isso discordo dos ditos agrupamentos do secundário que impedem os alunos de ciencias de terem historia e os alunos de humanidades de terem disciplinas cientificas.
Outra coisa é o ensino das ciencias no 2º e 3º ciclos, hoje o aluno dá o sistema respiratorio, na proxima aula está a dar o imunitario, com passagens a 180 graus para despachar a materia, na minha opiniao o ensino das ciencias até pelo menos ao fim do 3º ciclo devia ser dado numa perspectiva de historia das ciencias, abordado a ciencia em si, mas dando a perceber aos alunos como as coisas evoluiram.
Em ralação aos departamentos de historia, não são só eles que se tem que abrir, são as humanidades em geral que forma fechadas numa redoma de vidro, o senso comum da população julga que um curso de historia só serve para dar aulas e nem se lembra que ha quem a investiga.. Os professores de historia não são formados nas outras areas cientificas o mesmo que os profissionais de areas das ciencias são afastados da historia e das humanidades precocemente e acredito que parte da culpa venha dos "malditos" agrupamentos do secundário, hoje comos sempre a interdisciplinaridade é fundamental e o cruzamento da história com outras areas cientificas é tremendamente dificil e ainda pouco comum no nosso país.
Falando como interveniente localizado no campo da história tambem tenho que lamentar que a população em geral dê pouco valor à mesma, diz-se que é engraçado e curioso algumas coisas dessa "coisa" chamada historia mas não estudar-la, nem que seja numa perpectiva cultural e não académica, de facto a história como as outras ciencias são fundamentais para o civismo e cultura das pessoas e é lamentável essa lacuna, bem como muitas outras incluindo as cientificas..

Anónimo disse...

Realmente é uma pena que as pessoas não saibam mais sobre alguns cientistas, que foram pessoas que influenciaram muito mais o mundo em que vivemos, do que muitos reizecos de meia tigela. A história da ciencia é super-interessante, acho que era fixe para os putos, e não é preciso ser cientista para escrever sobre ela, basta ver o exemplo do brilhante Bill Bryson.
Quanto à idéia da licenciatura em história da ciência, parece-me exagerado para o pequeno país que temos, já chega de licenciados desempregados, acho que seria preferivel aproveitar o pessoal que já há na área da história, e talvez fazer umas posgraduações nessa área. Mas eu não estou dentro do assunto para mandar este tipo de bitaites, só me parece.
Não me parece ser essencial para um cientista conhecer com detalhe a história das ciências, basta o essencial.

Por falar na tal história, alguem me sabe dizer onde é que se podem arranjar (se existirem!) as obras originais do Newton, Galileu, e outros antigos, traduzidas para português? Deve ser curioso ler esses originais, mas nunca os vi por aí.
E os papers originais do Einstei? É que no web of science não há nada dessas cenas!

Bons posts, muito bem, boas continuações!
luis

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