sexta-feira, 27 de abril de 2007

Obesidade, açúcar e guerras da propaganda

Embora na última década a investigação cardiovascular tenha conhecido um crescimento exponencial, que se traduz num melhor conhecimento das alterações moleculares associadas à insuficiência cardíaca, este aumento de informação não teve o resultado esperado na prática clínica, visto que esta doença ainda apresenta um prognóstico sombrio, constituindo presentemente umas das principais causas de morte no mundo industrializado.

A insuficiência cardíaca é assim um problema de saúde pública com elevados índices anuais de morbi-mortalidade, tanto em países desenvolvidos como em desenvolvimento. O tratamento clínico com inibidores da enzima de conversão da angiotensina (ECA) e betabloqueadores, melhorou o prognóstico dos pacientes sintomáticos, mas o tratamento farmacológico apresenta grandes limitações, sendo o número de pacientes refractários muito alto.

As células estaminais, adultas e embrionárias, são extremamente promissoras em terapias regenerativas de corações doentes. Trabalhos muito recentes lançam luz sobre eventos a nível molecular e celular* que permitirão num futuro próximo alargar estas terapias.

Mas enquanto essas técnicas não estão disponíveis a prevenção é a melhor «terapia». O suplemento da Nature de 14 de Dezembro de 2006, Obesidade e diabetes (acesso livre), é devotado à «doença» do século, a obesidade. De facto, a obesidade implica uma panóplia de doenças crónicas, como a que é abordada especialmente neste suplemento da Nature, a diabetes tipo II, mas tem associadas igualmente outras disfunções metabólicas e, especialmente, doenças cardiovasculares, como reiteram a American Heart Association (AHA) e a Organização Mundial de Saúde. Aliás, em Novembro de 2006, os ministros da saúde da UE reuniram-se em Istambul para discutir formas de combater a obesidade.

O acúcar é normalmente apontado como um dos principais culpados pela obesidade, pelo que não é de espantar que existam inúmeras alternativas doces ao acúcar, por exemplo, sacarina, aspartame, frutose, sucralose, lactose, maltodextrina, ciclamato, acesulfame-k, sorbitol, steviosídeo, manitol, dextrose ou neohesperidina. Assim como não é de espantar que a concorrência neste campo seja feroz...

Dos Estados Unidos chega-nos a notícia de uma guerra publicitária entre dois gigantes dos edulcorantes artificiais, a Merisant (que comercializa aspartame sob as marcas comerciais Equal e NutraSweet - o equivalente em Portugal será o Canderel) e a McNeil Nutritionals (que comercializa sucralose com o nome Splenda). A Merisant processou a McNeil por causa da campanha publicitária desta última que inclui a frase «feito de acúcar, pelo que sabe a açúcar».

Claro que o problema da Merisant é não poder usar o equivalente na sua propaganda porque não teria o mesmo efeito dizer que o aspartame é feito de ácido aspártico e fenilalanina... Mas no cerne da questão está o facto de que o aspartame, que já foi lider incontestado do mercado dos adoçantes artificiais, tem vindo a perder terreno para a sucralose, que neste momento detém 62% do mercado norte-americano.

O julgamento da controversa frase, que segundo a Merisant induz os compradores a pensar que sucralose é mais «natural» que os concorrentes, contará com a presença de químicos que defenderão a causa de ambos os lados, mas na realidade para mim - opinião que mais químicos partilham comigo - ambas as companhias ( e muitas mais, não apenas na indústria alimentar) dever-se-iam sentar no banco dos réus por explorarem a iliteracia científica, neste caso química, do público em geral na promoção dos seus produtos.

Como escreve Joshua Finkelstein, editor da Nature, será interessante seguir este julgamento, especialmente porque a decisão final estará a cargo do júri e suponho que será um júri vulgar de Lineu, isto é, os jurados não serão escolhidos pela sua literacia científica.


*Por exemplo, a Cell de Dezembro de 2006 descreve duas descobertas revolucionárias neste campo. Uma equipa de cientistas do Massachusetts General Hospital e da Harvard Medical School em Boston, liderada por Kenneth Chien, identificou células estaminais embrionárias em ratos que se podem transformar nos vários tipos de células que constituem o coração, cardiomiócitos, células endoteliais vasculares e células musculares lisas, isto é, são percursoras não apenas das células que constituem o músculo cardíaco mas igualmente de todo o tipo de células cardíacas.

Os cardiomiócitos são células altamente diferenciadas que param a sua multiplicação logo após os primeiros anos de vida. A morte dos cardiomiócitos, por exemplo como consequência de um enfarte do miocárdio, origina uma fibrose tissular, que dependendo da extensão pode levar a insuficiência cardíaca.

Como afirmou Chien, «Este estudo documenta um paradigma para a cardiogénese, em que se mostra que a diversificação das linhagens de células musculares e endoteliais derivam de uma decisão a nível de uma única célula, a célula multipotente isl1+ que é uma célula progenitora cardiovascular».

No segundo artigo, a equipa liderada por Stuart Orkin do Howard Hughes Institute em Chevy Chase, Md., isolou células de um embrião de rato que expressam um gene cardíaco específico, o Nkx2.5+. Estas células diferenciam-se espontaneamente em cardiomiócitos e células do sistema de condução cardíaco - que conduzem os impulsos eléctricos que permitem os batimentos do coração. Os cientistas verificaram que algumas destas células - que expressam um segundo gene, o c-kit e a que chamaram c-kit+Nkx2.5+ - se transformavam em células musculares lisas.

A descoberta destas células mãe específicas para tecidos cardíacos é extremamente promissora porque a regeneração usando células estaminais embrionárias totipotentes tem riscos associados à possibilidade de crescimento descontrolado com formação de teratomas, um tipo de tumor.

11 comentários:

Anónimo disse...

A Palmira afirma que a insuficiência cardíaca é "um problema de saúde pública". Eu diria que é um problema de saúde privada. A insuficiência cardíaca não é contagiosa, logo, não é um problema público.

Também é debatível para que é que as pessoas querem viver muitos mais anos. Talvez o queiram porque não são elas quem paga a fatura. Se as pessoas fossem responsáveis por pagar os seus cuidados de saúde e por poupar para a sua reforma, talvez não tivessem tanta vontade de viver muitos anos extra.

Luís Lavoura

Bruce Lóse disse...

A doença não contagiosa não é um problema de saúde pública? Olá...

Já agora, Pal, se me permite uma pergunta à queima-roupa: na sua opinião os "adoçantes" que refere constituem ou não um risco mutagénico significativo na replicação de DNA ? (refiro-me à tendência dos anéis fenólicos para aldrabar o processo)

Anónimo disse...

Continuo a achar que a literacia científica por si só não chega. Penso que na fase do campeonato em que se encotra o mundo, a iliteracia científica não é problema mais grave do que a debilidade ética e a hipocrisia. A literacia científica até pode ser mais prejudicial do que benéfica se não for precedida ou acompanhada de esclarecimento acerca do que está implicado nas motivações com a ética. O fracasso no campo da ética é desanimador.

Há uma interpenetração cada vez maior entre a ciência e os poderes político, milirar e económico. Mais conhecimento científico traz mais poder e o poder exige o sentido das responsabilidades. Por outro lado já se verificou que coabitam muito bem em certas pessoas a boa literacia científica e crenças aberrantes que os levam a perpretar actos de morte e destruição maciça por imperativo dessas crenças. Por analogia também nada me garante que seja o esclarecimento científico e não outros desvios aos conceitos éticos que determine o sentido da decisão dos “jurados”. Já para não falar da falta de escrúpulos de certos eminentes cientistas quando participam em projectos políticos e militares na produção de armas cada vez mais sofisticadas para matar o maior número de pessoas possível, ou no campo farmacêutico (invocando obscuros estudos) só para reforço do poderio económico de certas empresas farmacêuticas… etc. E a hipocrisia (sobretudo dos países ricos) ? Veja-se por exemplo os relatórios do PNUD. Políticos, militares e homens de negócios servem-se da literacia científica para reforçar o seu poder, aumentando a sua riqueza à custa dos mais pobres e destruindo o ambiente.

Com isto não quero significar que temos de condenar a literacia científica por causa destas aberrações. De modo nenhum. O que digo é que não vamos muito longe se descorarmos o nosso investimento nos temas éticos. Não faltam comités de reflexão de ética, mas como não se enfrenta a doença da hipocrisia com determinação, as suas repercussões sobre a vida quotidina têm sido muito débeis.

Como se pode elevar o “sentido ético do mundo”, isso já é outro problema!

Fernando Dias

Bruce Lóse disse...

Pal, fiz-lhe uma pergunta séria sobre adoçante e mutagénese. Não vou respirar até me responder.

Palmira F. da Silva disse...

Sorry, Bruce mas só agora tive tempo de ver o DRN.

Eu só uso açúcar mesmo, por isso nunca tive grande curiosidade em investigar os edulcorantes artificiais. Sei que há uma grande controvérsia em relação ao aspartame sobre o tema mas parece que a sucralose é mais pacífica.

mas já agora há inúmeras substâncias que são potencialmente cangerígenas e que fazem parte da nossa dieta «tradicional» (e não estou a falar de enchidos, mais tradicional em termos de milénios ou mais). Mas é tudo uma questão de concentração e em baixas concentrações são perfeitamente inócuas.

Anónimo disse...

Ui! Que raridade... Alguém, que como eu, é só açucar!

Setora disse...

Vi um documentário que apresentava casos de doenças graves (tumores no cérebro...)que eram atribuídas ao uso frequente de aspartame. E, ao que parece, o licenciamento deste produto pela FDA foi fraudulento, só conseguido porque um daqueles senhores amigos do Bush tomou conta da empresa há uns largos anos atrás e moveu as suas influências.
O documentário era assustador.

Anónimo disse...

É impressão minha ou a especialidade do luís lavoura são os comentários parvos?

só as infecto-contagiosas são problema de saúde pública? o cancro não é um problema de saúde pública? as alergias? ele passou-se ou será só espírito de contradição?

Andre Esteves disse...

No Républica & Laicidade, a sequência de acontecimentos da carga policial de 25 de Abril:

http://www.laicidade.org/2007/04/27/«25-de-abril»-reprimido-a-25-de-abril-2/

Passa o link e a palavra!

Andre Esteves disse...

Steven Hawking em gravidade zero...

http://www.washingtonpost.com/wp-srv/photo/postphotos/orb/asection/2007-04-27/1.htm

Anónimo disse...

Quanto aos adoçantes artificiais não tenho nada nem a favor nem contra, tal como não tenho contra o descafeínado e a cerveja sem alcóol, mas se se preocupam tanto com a nossa saúde e por uma questão de coerência, porque não tabaco biológico? Temos mesmo que fumar o tabaco com aquelas famosas 4 mil substâncias cancerígenas e perigosas? (pagá-lo mais caro não melhora a nossa saúde)
Quanto às células estaminais espero que nos mantenham informados em relação às novidades, não só pela esperança que representam para o tratamento de várias doenças, mas pelas suas próprias características que somos (nós os leigos) tentados a considerar mágicas, ou seja se as pudessemos observar, fácilmente as colocávamos num plano quase irreal, de ficção científica ou quicá de divino. Quem sabe não é por temer a concorrência que a igreja se opõe tanto ao desenvolvimento do seu estudo.

guida martins

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