segunda-feira, 16 de abril de 2007

Luzes do norte

Aurora Australis ou «southern lights», fotografada do vaivém espacial Discovery durante a missão STS-114 à Estação Espacial Internacional.

Todos os anos a Universidade de East Anglia, em Norwich, organiza uma palestra sobre religião e educação, normalmente um evento pouco concorrido. A palestra de 2005 foi a excepção, embora o convidado não fosse o bispo proeminente de outras ocasiões mas sim um ateu muito vocal, o escritor Philip Pullman. Pullman escreveu uma trilogia de culto, «His Dark Materials», supostamente uma fantasia para crianças, que vendeu milhões de exemplares apenas em Inglaterra e a sua prosa figura frequentemente nos jornais britânicos.

Comprei por acaso o Northern Lights, o primeiro livro da trilogia - cuja adaptação cinematográfica estreará em Dezembro - um livro que, como seria de esperar, me fascinou pelas alegorias que apresenta. E um livro que, igualmente como seria expectável, mereceu violentas críticas pela mesmissima razão, imediatamente denunciada como um ataque ao cristianismo.

Achei assim interessante que Rowan Williams, o Arcebispo de Cantuária, tenha conseguido ver que as críticas implícitas na trilogia de Pullman se dirigem não ao cristianismo propriamente dito mas sim ao fanatismo religioso, ao dogmatismo, à mistura política religião e concomitantes opressão e perseguição de «dissidentes». Rowan William propôs mesmo que «His Dark Materials» integrasse os curricula de educação religiosa nas escolas públicas inglesas. Uma conversa muito interessante entre Pullman e o arcebispo sobre religião na arte e literatura - e ensino - pode ser encontrada aqui.

Segui a prosa de Pullman quando este opinava vigorosamente contra a censura que Blair tentou introduzir a coberto de uma nova lei da blasfémia. Mas gosto especialmente do que Pullman tem a dizer sobre educação, nomeadamente no tema que é recorrente neste blog:

«O que receio e deploro no campo das «escolas de fé» é o seu desejo de fechar a argumentação e colocarem alguns assuntos acima de questões ou debate. É vital que seja claro para as mentes jovens o que é uma posição de fé e o que não é - para que, por exemplo, não sejam enganados por pessoas religiosas que dizem que a ciência é uma posição de fé que não difere do cristianismo. A ciência não é uma questão de fé e permite-se que demasiadas pessoas o digam, e que digam que a minha «crença» na evolução é algo na mesma linha da «crença» deles em milagres. O que precisamos nas escolas, na realidade, é de filosofia básica».

Aurora borealis ou «northern lights» sobre o Alasca. As auroras, quer as boreais quer as austrais, devem-se a partículas carregadas com origem no Sol, o plasma que conhecemos como vento solar. O escudo magnético da Terra deflecte a maior parte dessas partículas. As que são aprisionadas na magnetosfera aceleram ao longo das linhas de campo da Terra até atingirem uma região circular, na parte superior da atmosfera, denominada oval das auroras, ou annulus. No annulus as partículas colidem com os gases presentes, transferindo-lhes energia. Os gases excitados libertam este excesso de energia sob a forma de fotões, ou seja, emitem luz.

No passado, as auroras preencheram o léxico do imaginário mitológico dos que as observavam fascinados. Fascínio que permanece inalterado embora hoje consigamos explicar este fenómeno sem recurso a qualquer mitologia.

4 comentários:

Fátima André disse...

O post da Palmira sobre as "Luzes do Norte", fez-me lembrar alguns poetas que impelidos por esta fulgente e misteriosa aurora, conseguiram de forma singular transmitir ao leitor um fascínio quase indizível por palavras. Da poesia emerge esse fascínio que, também, me fascina. Aqui deixo um poema de Mário de Sá Carneiro do seu livro "Dispersão" que nos faz mergulhar nessas profundezas:

Quase

Um pouco mais de sol - eu era brasa,
Um pouco mais de azul - eu era além.
Para atingir, faltou-me um golpe de asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...

Assombro ou paz? Em vão... Tudo esvaído
Num grande mar enganador de espuma;
E o grande sonho despertado em bruma,
O grande sonho - ó dor! - quase vivido...

Quase o amor, quase o triunfo e a chama,
Quase o princípio e o fim - quase a expansão...
Mas na minhalma tudo se derrama...
Entanto nada foi só ilusão!

De tudo houve um começo ... e tudo errou...
- Ai a dor de ser - quase, dor sem fim...
Eu falhei-me entre os mais, falhei em mim,
Asa que se elançou mas não voou...

Momentos de alma que desbaratei...
Templos aonde nunca pus um altar...
Rios que perdi sem os levar ao mar...
Ânsias que foram mas que não fixei...

Se me vagueio, encontro só indícios...
Ogivas para o sol - vejo-as cerradas;
E mãos de herói, sem fé, acobardadas,
Puseram grades sobre os precipícios...

Num ímpeto difuso de quebranto,
Tudo encetei e nada possuí...
Hoje, de mim, só resta o desencanto
Das coisas que beijei mas não vivi...

Um pouco mais de sol - e fora brasa,
Um pouco mais de azul - e fora além.
Para atingir faltou-me um golpe de asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...

Listas de som avançam para mim a fustigar-me
Em luz.
Todo a vibrar, quero fugir... Onde acoitar-me?...
Os braços duma cruz
Anseiam-se-me, e eu fujo também ao luar...

Paris, 13-5-1913
In Dispersão (1914)

Fátima André disse...

Em jeito de agradecimento à Palmira, pela pessoa excepcional que é, aqui fica uma poesia que consta do meu projecto de livro "Retalhos... imperfeitos":

Quisera eu ser…

um oceano banhado
das mais puras e cristalinas águas
infinito que se encobre e desvela
arrebatando as profundezas do meu ser
penetrando minhas vísceras
saboreando meu paladar salgado
que tempera e conserva a vida

depressa percebi que tal imensidão
não era meu leito

caminhei em busca
do meu ser

quisera eu ser…
um rio que corre velozmente
em busca do sonho que acalenta
encontrar o mar
para nele se perder e encontrar
numa paixão infindável

como poderei eu ser um rio
se minha loucura me faz transbordar
as margens do meu leito
destruindo a criação divina
encantamento do ser

poderei ser apenas uma pequena lagoa
de águas paradas silenciosas
onde parelhas
se deleitem mirando
no espelho de minha beleza

Fátima André

Palmira F. da Silva disse...

Olá Fátima:

Não sei como descobriu que Mário de Sá Carneiro é o meu poeta favorito :-) (e de quem tb gosto da prosa, especialmente d'A confissão de Lúcio).

Muito obrigado pela gentileza, gostei imenso :-)

Fátima André disse...

Palmira,
Pois, não descobri, ninguém me disse, nem Deus me falou... mas também gosto muito de Mário de Sá Carneiro. Prezo saber que é o seu poeta favorito.
Abraço.
Fátima

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