sábado, 31 de março de 2007

AS BOAS E OS MAUS


Minha crónica do "Público" de sexta-feira passada:

Jorge de Sena, depois de zurzir longamente o romance "Domingo à Tarde" de Fernando Namora, rematava assim:

«E concluamos com uma nota comprovativa da total isenção com que foi escrito este artigo: eu nunca li nenhum romance de Namora, e muito menos este de que me ocupei. De onde deve concluir-se que a diferença fundamental entre a literatura autêntica e a literatura de consumo está em que, para falarmos desta última, não é necessário lê-la."

O mesmo digo do programa "A Bela e o Mestre" que está no ar na TVI. Eu nunca vi esse programa nem faço tenções de ver mas, como se trata de um programa de consumo, pelos vistos de grande consumo, para falar dele nem preciso vê-lo. Contaram-me o pior e imagino até que possa ser pior do que me contaram.

O título remete para “A Bela e o Monstro”, um conto ancestral que foi reescrito no século XVIII por Madame de Beaumont e que deu o bem conhecido filme dos estúdios Walt Disney de 1991. Mas as belas do programa pouco têm que ver com a menina do filme. Esta era até bastante inteligente, lia livros e, no castelo do monstro, ficou excitadíssima com a enorme biblioteca. E é a sensibilidade ligada à inteligência que a levou a amar o monstro, fazendo com que ele deixasse de o ser. Era bem diferente das raparigas estupidamente bonitas por fora e completamente ocas por dentro que imagino - repito que não vi - fazem as delícias dos “voyeurs” televisivos.

Já muita gente que viu o programa se insurgiu contra a imagem estereotipada e retrógrada da mulher que o programa transmite. “A Bela e o Mestre” é um verdadeiro regresso ao passado. No final do século XIX, Ramalho Ortigão, o macho lusitano que se bateu com Antero de Quental em duelo antes de se juntar aos “vencidos da vida”, escrevia: "Pobres mulheres! Elas são-nos bem inferiores (...) pela anatomia dos ossos e dos músculos e pela constituição do cérebro. Elas têm a cabeça mais pequena, como as raças inferiores (...) não sabem compor óperas e nunca chegam a entender a matemática". Ramalho falava sem ponta de ironia: a mulher era mesmo considerada por ele e pelos seus contemporâneos um ser inferior. Sabemos hoje que ele estava redondamente enganado, e os seus descendentes intelectuais, que ainda não passaram do século XIX, estão tão enganados como ele. Ou melhor: estão ainda mais enganados, pois durante o tempo que passou ficou amplamente demonstrada a desrazão ramalheana. Quanto à ópera, confesso que não sei o suficiente, mas posso assegurar que alguns dos nossos melhores matemáticos são mulheres. Algumas bastante belas, de acordo com os cânones passados ou actuais, se é que isso interessa.

Um mestre aparece identificado com um monstro na versão portuguesa do telelixo norte-americano. Como muita gente e muito bem já defendeu as mulheres da acusação de ignorância, mas ainda ninguém defendeu os mestres, não tanto da acusação de fealdade mas mais da de maldade que está implícita no título português (um monstro é não só feio como mau!), venho eu defendê-los. Apesar de não ter o grau de mestre, tenho o de doutor, e sinto-me metido no mesmo saco. As belas são as boas e nós somos os maus. Mas que mal fizemos nós? E por que motivo o mestre ou, por maioria de razão, o doutor aparece associado ao terror e ao mal?

Esta injusta associação tem, de facto, uma longa história, na qual se incluem o Doutor Fausto, um homem de ciência que fez um pacto com o demónio, e o Frankenstein, um estudante de ciências que criou um monstro no laboratório (a criatura acabou por tomar o nome do criador). A propósito, foi uma rapariga inglesa de 19 anos, Mary Shelley, que escreveu, pouco antes de Ramalho nascer, “Frankenstein”, um clássico universal, ao passo que o escritor português, goste-se ou não dele, nunca escreveu uma obra que atravessasse fronteiras.

Mas muito tempo passou desde o Doutor Fausto e o Frankenstein. E, assim como as belas já não são vistas como eram, já é tempo de mudar a má fama dos mestres!

6 comentários:

acilina disse...

Obrigada pela parte que me toca. Realmente custa a crer que exista tamanha ignorância naquelas belas. Devem ter sido escolhidas com alguma dificuldade, pois não são nada representativas da classe. Também é estupidificante obrigar os rapazes com 140 de QI a aprenderem técnicas de maquilhagem e a criarem músculo à força.
Eu lecciono numa escola de engenharia e frequentemente tenho alunas muito mais brilhantes que os seus colegas e que são bonitas. Aliás acho que há uma certa beleza que só se conserva se houver inteligência. Também é sabido que há mais mulheres a frequentar e a concluir cursos superiores e que na maioria dos casos, elas têm maior capacidade de trabalho. Aquele programa está deslocado no tempo. Tem mais de um século de atraso.

Manel disse...

"Aliás acho que há uma certa beleza que só se conserva se houver inteligência."

Nem mais.

Anónimo disse...

o anterior reality show é uma pérola ao pé deste. de facto ainda nos conseguimos surpreender com a mediocridade, o que achámos ser impossível depois de programas como o big brother. Mas aqui, o formato consegue, inesperadamente, exagerar as piores características destas pessoas. pergunto-me o que será delas depois desta humilhação pública, dos anteriores programas, saíu um concorrente que está preso e outro que tentou o suicidio.

Anónimo disse...

Identificam-se vários preconceitos, quer na defesa, quer no ataque a esse programa.

Preconceito 1:
A inteligência é um dado adquirido (congénito ou outro), ou se tem, ou não se tem.

Preconceito 2:
A inteligência é permanente. Alguém que é considerado inteligente no momento A, é inteligente em todos os momentos até morrer.

Preconceito 3:
A inteligência é uma compilação de informação.

Preconceito 4:
A inteligência é uma aptidão para resolver problemas.



Sendo assim, defina-se primeiro inteligência e depois faça-se a medição.
Um veredicto tão implacável como o de considerar alguém "não inteligente", ou "menos inteligente", exige rigor.

As definições comuns de inteligência pressupõem instrumentos de medida (testes).

A capacidade de resolver correctamente as baterias de testes é treinável. Quanto mais informação se tem, quanto mais esquematizada está a experiência (formação) da pessoa para a abordagem de um determinado problema-tipo, maior a probabilidade de obter um bom score.

O problema é, em geral, utilizar-se uma definição de inteligência mais corrosiva: a inteligência é uma aptidão natural (inata) para desempenhar com sucesso determinada tarefa.

A experiência força-me a concluir que a inteligência, na sua versão corrosiva, é impossível de medir.

A inteligência não é um dado adquirido, isto é, não é permanente. Use-se o método que se usar para a aferir, tem oscilações no tempo.

Concluo, dizendo, que um professor honesto deve-se abster de considerar um aluno mais inteligente que outro. Tal juízo, para além de condicionar o processo de formação do aluno, pode estar a negar-lhe a possibilidade de ele se poder assumir como mais (ou igualmente) inteligente (estudando mais, isto é, o mesmo que o outro).

Anónimo disse...

Aliás eu, que adoro mulheres, até diria que não vale a pena estar a comparar as diferenças entre mulheres e homens, para além das óbvias. Há maiores semelhanças e diferenças entre homens e homens, entre mulheres e mulheres do que entre homens e mulheres.

Quanto a o papel dos cientistas eu, que adoro cientistas, penso que deve ser melhor discutido e interpretado pois a história tem mostrado que a sua acção e inacção tem, muitas vezes, estado do lado dos que usam e, sobretudo, abusam dos poderes. Não querendo avançar com exemplos, que melhor do que eu conhecem, gostaria de lembrar que estes maus exemplos vão do global, ao individual. Do infinito ao infinitésimo. Da força nuclear, à nanotecnologia. Do aquecimento global, ao controlo do cérebro. E quem nunca "pecou" que atire a primeira pedra...

Um abraço!

Cláudia S. Tomazi disse...

De mora o ouro a borla.

NOVA ATLÂNTIDA

 A “Atlantís” disponibilizou o seu número mais recente (em acesso aberto). Convidamos a navegar pelo sumário da revista para aceder à info...